São Paulo, sexta-feira, 20 de outubro de 1995
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Lados esquecidos do parecer Prisco Viana

MAILSON DA NÓBREGA

A decisão sobre a proposta de reforma administrativa, mais uma vez adiada no Senado, evidencia a extrema complexidade da matéria. Põe a nu o embate entre o velho e novo que caracteriza os processos de transição social e dá origem a muitas das crises de governo.
Entre as várias resistências do relator Prisco Viana ao projeto, inquinando praticamente tudo de inconstitucional, apenas uma aparece com destaque: a estabilidade no emprego. Quem se atém ao noticiário pensa que ele se contentou em defender essa vantagem do servidor público.
A rigor, a flexibilização da estabilidade não teria efeito imediato nas finanças do governo. Salvo em alguns Estados, onde o inchaço dos quadros atinge proporções de calamidade, a quantidade de servidores não é exagerada. Comparado com outros países, o Brasil tem um número relativamente menor de funcionários públicos.
A revisão da regra é, acima de tudo, um sinal para o futuro. Permitirá a melhoria estrutural e de qualidade do serviço público. Não produzirá demissão em massa. Dificilmente passará sem salvaguardas para a dispensa imotivada ou por razões pessoais ou políticas pelos poderosos de plantão.
Há outros aspectos do parecer (talvez mais importantes) que estão esquecidos. O deputado questiona, por exemplo, a mudança do regime jurídico único e o fim da autonomia do Congresso para decidir sobre os seus próprios salários e os do Judiciário.
O regime jurídico único, reinstituído pela Constituição de 1988, subordina o serviço público ao requerimento universal do concurso público. Retornou-se à década de 30, jogando-se no lixo o avanço experimentado com os regimes das autarquias e fundações. Enrijeceu-se tremendamente a administração.
O principal foco de distorções administrativas nascido em 1988 foi, contudo, a referida autonomia do Legislativo (federal e estadual) na área salarial. Sob o argumento da necessidade de preservar a independência dos Poderes, novamente invocado pelo relator, a nova Carta Magna inovou para pior, confundindo independência com interdependência.
A revolução norte-americana e a Constituição de Filadélfia (1787) concretizaram, como se sabe, muitos ideais do liberalismo político e serviram de modelo para a construção do presidencialismo brasileiro. Uma de suas características básicas é o mecanismo de pesos e contrapesos ("checks and balances) para evitar decisão unilateral ou domínio de um dos Poderes.
O Legislativo pode ser questionado pelo Executivo por meio do veto. Não se trata de bloquear a decisão, mas de pedir que ela seja reconsiderada ou se derrube o veto, sob quórum qualificado, se assim julgado conveniente. No Brasil, numa matéria relevante como a de dispor sobre os recursos do contribuinte, o mecanismo morreu. O Congresso e as Assembléias Legislativas decidem unilateralmente. Resta ao Tesouro pagar.
A proposta não retira a iniciativa do Congresso na matéria. Apenas subordina a decisão sobre salários à regra geral do projeto de lei e da sanção presidencial, incluindo, portanto, a hipótese do veto. Nos EUA, recentemente, o presidente Clinton ameaçou vetar decisão do Legislativo sobre cortes de despesas. Ninguém falou em quebra de princípio democrático.
A reinstituição do veto ao aumento de salário é medida essencial para aumentar o controle da sociedade sobre essas decisões. Chama a atenção da mídia. Obriga o Congresso a repensar. Protege melhor o cidadão e o contribuinte. Reforça o sistema de pesos e contrapesos. Não cassa a independência dos parlamentares.
A presente autonomia tem sido fonte de inadmissíveis privilégios. Já existe Estado onde a despesa com aqueles dois Poderes ultrapassa 25% dos gastos totais com pessoal. No governo federal, a mesma despesa mais do que triplicou sua proporção desde 1988. Na Justiça e no Ministério Público, há salários -e mesmo aposentadorias- superiores aos de juízes em serviço ativo nas cortes supremas de países ricos.
É preciso deixar de ver o parecer Prisco Viana apenas pelo seu lado contrário à flexibilização da estabilidade do servidor público no emprego. Há outros aspectos que precisam ser objeto de igual ou maior reflexão e debate.

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