São Paulo, sexta-feira, 20 de outubro de 1995
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Comida se confunde com poesia na China

HAMILTON MELLÃO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois chineses se encontram na rua e afetuosamente se saúdam. "Che fang le ma?", diz um. "Che fang le ma", rebate o outro. Um sorriso e seguem.
O que eles disseram? Simplesmente: "Já comeu?". Essa é uma saudação habitual correspondente ao nosso "Como vai?" ou ao "How do you do?" americano e demonstra claramente a importância dada pelos chineses à alimentação, não só pela ingestão de calorias, mas pelo prazer da mesa e pela importância que eles creditam ao comer para a manutenção da saúde.
Na China se pode comer bem ou mal, pouco ou muito. Mas em um país hiperpopuloso e constantemente assolado por carestias, o ato de se nutrir é obrigatoriamente um exercício de criatividade.
O que se come hoje na China? Rigorosamente tudo que seja digerível. Mas é indispensável que o alimento se atenha à sua cultura gastronômica milenar. Ou seja, refinado, com capricho minucioso e denominado poeticamente.
Assim, um cozido de rato se intitula "quitute caseiro do sol radiante. Um guisado de cobras, "enguias do crepúsculo". Podemos buscar a razão da poesia nos nomes lendo o tratado filosófico "Tao Teh Ching": o nome é o início de todas as coisas.
Assim, a cozinha chinesa, que é mais técnica e muito mais antiga que a francesa, pode ser definida como uma sublimação estética da necessidade de comer aonde, numa atividade artística, a mais basal, pelo meio da qual a massa dos pobres, sempre obcecada pela carestia, introduz a procura e a satisfação estética na vida cotidiana.
Se trata de uma culinária elaborada, minuciosamente preparada e atentamente consumida. Ao mesmo tempo, é uma cozinha sábia, parcimoniosa, porque nasce da plurissecular procura de fazer comestível aquilo que muitas vezes não o é naturalmente, por um processo que tem muito a ver com o da criação nas artes.
Assim são as mãos do homem, artista ou cozinheiro, que modifica a matéria-prima, transmitindo uma elaboração refinada, que, enquanto resguarda a cozinha, é muito mais complexa que a basilar passagem do cru para o cozido.
Por não conhecer tabus alimentares, sejam atávicos ou religiosos, podem impor seu conhecido espírito prático também na gastronomia. Se comem gafanhotos é por entender que, apesar de esses insetos volta e meia destruírem as suas plantações, eles podem ser uma boa fonte de proteína animal.
Dessa premissa materialista, vinda da penúria, nasceu a cozinha chinesa -ou as cozinhas chinesas, já que um país tão extenso e tão diversificado climaticamente não pode ter uma unidade culinária. Cada região tem a sua própria cozinha, construída em milhares de anos.
A estrutura da refeição chinesa é horizontal, enquanto a nossa pode ser definida como parabólica. Isto é, uma curva onde temos a entrada, depois o ponto culminante (o prato principal) e o declínio para a sobremesa. Enquanto o menu ocidental é uma sucessão de pratos, o chinês é uma degustação conjunta e sutil, onde não existem grandes alterações na dinâmica do palato.
Existe um ditado popular chinês que diz que um prato deve ser agradável à vista, atraente pelo perfume e saboroso ao paladar. Prejulgar o exótico é uma característica ocidental, mas é interessante saber o que pensam os gourmets chineses sobre a cozinha francesa, por exemplo -ela é boa para o paladar, mas não satisfaz nem a vista nem o olfato-, ou sobre a cozinha japonesa, que privilegia o visual, mas, quanto ao sabor e ao olfato, é uma lástima.

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