São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 1995
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'A Tempestade' funde culturas

MARIO VITOR SANTOS
EM NOVA YORK

É a batida do Olodum que abre e fecha a encenação de "A Tempestade", no prestigioso New York Shakespeare Festival organizado pelo The Joseph Papp Public Theater, no Central Park, em Nova York. Não é a batucada do Olodum real, mas de uma sua versão americanizada, emblema musical do fascínio e do transe provocado pela selva nas mentes civilizadas.
Um tum-tcha-tcha-ta-tum de virada rapidinha e poderosa, que ressoa como um chamado ancestral vindo da floresta recortada pelas árvores ao fundo da arena ao ar livre do Delacorte Theater, encravado no parque nova-iorquino.
O ator inglês Patrick Stewart, o capitão careca Jean-Luc Picard da série de TV "Jornada nas Estrelas - A Próxima Geração", arrebata no papel de Próspero, o ex-duque de Milão envolvido com seus livros, desinteressado do poder e dele afastado por um golpe do próprio irmão. Enviado ao mar num pequeno barco com seus livros, ele e a filha Miranda de dois anos acabam dando numa ilha.
Doze anos depois, quando o relato realmente começa, uma embarcação conduzindo o irmão e seu aliado rei de Nápoles naufraga perto da ilha. Já está em andamento a vingança de Próspero.
É uma peça assombrada, ao mesmo tempo saudação à fertilidade e celebração das forças ordenadoras oriundas da natureza. A transposição dos sons afro-brasileiros expressa uma expectativa conciliatória, uma espécie de antropofagia às avessas, estimulada, é fato, pela ação afirmativa, a culpa e a onda do politicamente correto nos tempos de O. J. Simpson.
Com sua empostação de experiente ator shakesperiano e seu físico que parece talhado em pedra, Patrick Stewart está à altura das dimensões sobrenaturais dos poderes de seu Próspero. Isso apesar das óbvias dificuldades colocadas pelo palco ao ar livre, em que a voz tem que concorrer com o som das pás dos helicópteros de turismo que sobrevoam a noite abafada do verão passado em Manhattan.
À altura do Próspero de Stewart não há nenhuma outra atração. A única é a espetacular aparição da bruxa Sicorax, um ser imenso, meio dragão, formado por adereços concebidos pela cenógrafa Barbara Pollitt.
O sotaque inglês de Stewart contrasta com uma Babel de outros falares: do Harlem, latinos, de várias regiões do interior dos Estados Unidos. Esta montagem da última obra-prima de Shakespeare mescla forças avassaladoras, atrita o mundo racional e o natural, a selva e a cidade dentro de cada um, junta África e Europa, arrisca, no palco circular, uma fusão de culturas e crenças.
Não é só para passear que o diretor George Wolfe (também responsável por "Angels in America" na Broadway) vive na ponte-aérea Nova York-Salvador. Ele parece buscar muito mais do que apenas o ribombar de uma cortina sonora baiana para marcar o começo e o fim de suas obras.

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