São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 1995
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Bem-aventuranças

PEDRO SIMON

Se ao Estado é atribuída a responsabilidade de dar comida a quem tem fome, água a quem tem sede, abrigo a quem vive ao relento de pontes e viadutos, educação aos cegos de saber e saúde aos que padecem de todos os males, bem-aventurados os recursos públicos.
Se os recursos públicos se traduzirem, efetivamente, na mesa farta, na casa que abriga, na escola que ensina e no hospital que devolve a saúde, bem-aventurados os governantes.
Se os governantes administrarem os recursos públicos atribuindo-lhes o custo de oportunidade da própria vida, bem-aventurados os eleitores.
É bem verdade que o país não tem vivido, ultimamente, tempos de bem-aventuranças. Talvez a imagem mais representativa transportada para a história recente seja a dos "vendilhões do templo", uns expulsos, outros pilhados atrás das pilastras da burocracia estatal.
Que o digam as Comissões Parlamentares de Inquérito que, ao resgatarem o papel do Congresso Nacional e sua missão constitucional, recolheram elementos necessários para afastar um presidente da República e vários parlamentares que se investiram, de forma perversa, em mercadores da coisa pública.
A experiência recente, rica e histórica, não se constituiu suficiente para exorcizar o sacrilégio da profanação dos sagrados recursos que poderiam se traduzir na multiplicação do alimento, da moradia, da alfabetização e do remédio.
É triste constatar que ainda persistem tratamentos diferentes na definição de recursos quando privados e públicos. Os primeiros, de propriedade definida, são considerados como aqueles que devem ser maximizados. Os últimos, traduzidos quase sempre como que sem dono, são os que podem ser dilapidados.
É por isso que, enquanto persistir essa postura perversa de confundir o que é de todos com o que pode ser de poucos ou de ninguém, devem ser incentivados mecanismos de controle e de investigação sobre os possíveis desvios de dinheiro público para contas privadas, mesmo que a título, aparentemente, legal.
Ao Congresso Nacional impõe-se concluir uma história que se mostrou, aos olhos e ouvidos do público, inacabada. A investigação dos fatos recentes veiculados pela imprensa sobre tráfico de influências -a instalação da "CPI dos Corruptores"- é exemplo de capítulos interrompidos pela inércia.
Se sobre o Congresso ainda pairam culpas por omissão, o Poder Executivo cometeu o pecado de abortar uma das melhores experiências já instituídas, cujo objetivo é o zelo pelo que é, na definição correta, público. Trata-se da Comissão Especial de Investigação (CEI), criada pelo ex-presidente Itamar Franco para realizar "diligências e investigações a propósito de fatos, atos, contratos e procedimentos de órgãos ou entidades da administração pública federal, direta ou indireta".
Se é venial o pecado de extinguir a CEI, certamente por deficiência de assessoria, é também sacrilégio o fato de a volumosa documentação compulsada durante os trabalhos dormitar na tábua fria de um armário fechado por funcionário do segundo escalão. Em resposta a requerimento de pedido de informações, por mim encaminhado por meio da Mesa Diretora do Senado Federal, o Ministério da Justiça alegava, em maio último, não ter recebido tais documentos que "ainda encontram-se guardados, segundo consta, no Ministério da Administração e Reforma do Estado".
Diz também que "segundo informações não-oficiais, compõem um acervo bastante vasto e acondicionado em 40 caixas de papelão". Pelo que se expõe, permite-se imaginar ao menos o tamanho das prateleiras. O decreto nº 1.376, de janeiro de 1995, que extinguiu a Comissão, transferiu seu acervo documental à guarda do Ministério da Justiça e determinou que diligências investigatórias deveriam integrar as competências da Secretaria Federal de Controle do Ministério da Fazenda.
A alma da CEI se materializava na história de vida de cada um de seus integrantes, o que consubstanciou a legitimidade necessária para o tratamento de questão de tamanha sensibilidade. Nunca é demais lembrar que a imprensa internacional publicou matérias sobre pesquisas que colocam o Brasil como o quinto país onde se praticam as mais variadas formas de corrupção, em uma lista de 41.
Por também acreditar que o assunto deva envolver decisões a nível de primeiro escalão de governo, pois não se deve atribuir a um órgão subalterno da estrutura de um dos ministérios a fiscalização dos demais, apresentei projeto de lei no Senado autorizando a criação de uma nova Comissão Especial de Investigação, nos moldes da anterior, que permita dar sequência aos trabalhos interrompidos por decreto presidencial.
Os fatos recorrentes que a mídia tem estampado sobre tráfico de influências e má utilização de informações privilegiadas são a melhor justificativa para a recriação da CEI. São fatos que não colaboram para a retirada ou ao menos para a melhora da posição do país na escala da corrupção.
Tenho a convicção de que dia virá quando a imprensa divulgará matérias sobre a instauração de uma nova moralidade administrativa em que as relações pessoais não estejam sedimentadas pelos laços de solidariedade, lealdade e cumplicidade utilizados com fins essencialmente perversos. Nesse dia, então, bem-aventurados os leitores.

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