São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 1995
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Anistia não é lei do silêncio

ANDRÉ HERZOG

Hoje completam-se 20 anos da morte de meu pai, Vladimir Herzog, nas dependências do DOI-Codi. Se estivesse vivo, acredito que ele estaria ao lado de seus antigos amigos que chegaram ao governo, a começar pelo presidente Fernando Henrique. Mas não foi assim.
Em 1975 o 2º Exército procurava eliminar os focos de crítica ao autoritarismo no meio jornalístico. No dia 24 de outubro os agentes do regime foram à TV Cultura convocar Vlado para depor. Ele era diretor de jornalismo e estava fechando a edição da noite.
Comprometeu-se então a comparecer no dia seguinte de manhã, mesmo sabendo que vários jornalistas e amigos estavam sendo presos ilegalmente e torturados no quartel da rua Tutóia. Apresentou-se, pois não tinha nada a esconder, trabalhava em uma fundação pública, nomeado pelo secretário de Cultura do Estado.
Como se sabe, o suposto depoimento foi em verdade uma brutal sessão de tortura que o matou ali mesmo, naquele mesmo dia. Sua morte causou indignação e uma grande mobilização pública que foi decisiva para impedir o endurecimento do regime militar.
Ele era uma pessoa conhecida e sem qualquer envolvimento com grupos armados. Embora nossa família tenha ganho o processo que responsabilizou a União pela prisão, tortura e morte, até o presente momento não foram oficialmente investigadas as circunstâncias e as pessoas diretamente envolvidas. O país até hoje desconhece como e por que pessoas como ele foram torturadas e assassinadas.
Ainda que o projeto que atualmente tramita no Congresso reconheça que os desaparecidos foram mortos sob responsabilidade do Estado, permitindo a eventual indenização às famílias, esse projeto falha no fundamental, que é restabelecer a verdade histórica.
É triste e profundamente decepcionante ver o presidente Fernando Henrique, que participou da luta contra o autoritarismo, não se empenhar para que o período seja investigado e reconstituído. Coloca-se passivamente como mediador entre os interesses de setores das Forças Armadas e a angústia das famílias dos mortos e desaparecidos.
Não há nada que justifique a tentativa de pôr um ponto final na questão sem esclarecer o que ocorreu, negando-se a apurar as circunstâncias das mortes e torturas. O conhecimento desses fatos não abala a democracia brasileira. Ao contrário, é quando não prevalece a justiça que os princípios democráticos são enfraquecidos.
Quando saíram da Iugoslávia, meu pai e meus avós estavam à procura de uma nação livre, distante da barbárie nazista. Escolheram o Brasil para ser o seu país e Vlado até mudou seu nome para a versão em português, Vladimir.
Hoje é doloroso ver que na Europa os crimes cometidos pelo Estado são abertamente discutidos e aqui não. Sob esse aspecto a abertura no Brasil foi mesmo a mais pífia de toda a América Latina. Até no Chile, onde o ex-ditador continua no comando das Forças Armadas, um general acaba de ser preso. No Brasil não estamos exigindo nem isso, não pedimos punições, já que foi promulgada a Lei de Anistia em 1979. Queremos apenas que se apure a verdade e que ex-torturadores sejam afastados de cargos públicos. É muito?
A omissão do governo brasileiro chega mesmo a criar situações constrangedoras para o país na comunidade internacional. Ainda recentemente o governo viu-se forçado a um tortuoso processo de exoneração de um adido militar em Londres, a pedido do governo britânico, por tratar-se de um ex-torturador.
Há poucos meses o presidente da Anistia Internacional declarou que era "profundamente decepcionante" o tratamento dado no Brasil à situação dos desaparecidos políticos e suas famílias. O país assinou e não cumpre os tratados internacionais sobre direitos humanos.
Não se pode aceitar passivamente o arbítrio. Essa funesta tolerância continua a promover tragédias como a carnificina do Carandiru, o assassinato dos meninos de rua na Candelária e a chacina dos sem-terra em Rondônia. Isso para não falar da tortura cotidiana nos presídios e delegacias. Como podemos construir um país moderno acobertando a selvageria e a incivilidade?
O atual governo não foi eleito para preocupar-se apenas com a economia. Um país é muito mais do que isso. Uma nação tem de ter sua dignidade, seus valores, precisa ter princípios. A justiça e a verdade não podem ser negociadas no varejo dos interesses políticos dos que estiveram comprometidos com a repressão.
Meu pai e tantos outros lutaram pelo ideal de uma sociedade democrática, justa e mais igualitária. Lutaram para que possamos escolher nossos governantes e emitir livremente nossas opiniões. Pois que seja apurado como, quando e onde nossos cidadãos foram mortos. Temos de demonstrar um mínimo de compromisso e respeito pelas vidas perdidas.

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