São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 1995
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Rato de orelha humana retrata morbidez

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um camundongo de laboratório dotado de orelha humana -esta foto assustadora apareceu na Folha de quarta-feira passada. Cientistas da Universidade de Massachusetts pesquisam novas técnicas de transplante. A orelha humana é artificial. O camundongo, modificado geneticamente, não a rejeitou.
A pesquisa é importante. Visa a eliminar a necessidade de doadores de órgãos. Testa a rejeição para órgãos artificiais. Quem não tiver orelha, por exemplo, poderá receber um implante, uma orelha de plástico -não, de cartilagem moldada- sem problemas.
Mas se a pesquisa é importante, a foto é sinistra. A orelha humana ocupa quase a totalidade das costas do ratinho, num efeito que rivaliza com os quadros de Hyeronimus Bosch. É como se o camundongo estivesse dando à luz, pelas costas, a um ser humano; a orelha recém-nascida vai brotando do corpo, num desprendimento incompleto, num esforço impossível, numa hipótese monstruosa.
Ou então é como se o camundongo recebesse algo das potencialidades humanas; aquela orelha nas costas, virtual receptáculo das sinfonias de Mozart, dos discursos de Demóstenes, dos cantos de um rouxinol, afunila-se no quase-nada irrequieto, farejador e assustado de um ratinho.
A cena é horrorosa. Duas coisas me perturbam.
A primeira é a seguinte. Devemos tudo à ciência. Os cientistas são benfeitores da humanidade. Certo, eles também inventaram a bomba atômica; mas o que já salvaram de vidas humanas compensa com lucro os mortos de Hiroshima e Nagasaki.
Discordo totalmente dos grupos ecologistas radicais, que lutam contra o uso de macacos ou ratinhos em pesquisas científicas. Experiências cruéis são feitas com animais, afim de descobrir a cura do câncer. Todo cirurgião testa suas habilidades num cachorro indefeso. Azar do cachorro; é a própria sabedoria a bondade da natureza, se é que existe, o fator que autoriza a espécie humana a se virar como bem entende.
Mesmo assim, no caso do rato com orelha humana, fico pensando se os cientistas não exageraram um pouco. Não posso questionar "cientificamente" a experiência que foi feita. Mas imagino que, ao lado da legítima pesquisa biológica, outra coisa esteja em jogo: o gosto pelo sensacionalismo, a vontade de criar notícia, o interesse em mobilizar o público.
Como se sabe, uma série de contingências irracionais determina o progresso de determinado ramo científico. As instituições que financiam os laboratórios de química, de genética, de medicina querem publicidade e resultados de impacto. O impacto se produz, muitas vezes, graças a fotos sensacionais.
Já comentei neste espaço a foto do globo terrestre, totalmente distorcido, chocante de tão feio, que foi divulgada por uma agência espacial européia. O objetivo da foto não era dar uma idéia mais realista de como é o nosso planeta, mas sim o de mostrar a precisão de alguns equipamentos astronômicos.
Minha impressão é que a foto do rato com orelha implantada obedece à mesma lógica: a de prover fatos estranhos e sensacionais para a opinião pública, mostrando trabalho e proezas, às entidades financiadoras.
Desconfio que pesquisas igualmente importantes para o bem-estar da humanidade vivam à míngua de financiamentos, devido à ausência de fatos sensacionais e de experiências horrorosas a divulgar.
Não fosse assim, já teríamos há muito tempo um carro que dispensasse derivados de petróleo. O produto não parece difícil de ser inventado, do ponto de vista científico. Mas os interesses comerciais das empresas petrolíferas devem valer alguma coisa.
Todo esse raciocínio é muito especulativo. E está a um passo de teorias que considero totalmente ingênuas, a saber: "Já foi descoberto um remédio contra o câncer, ou contra a cárie, mas o lobby dos laboratórios, dos médicos, dos dentistas, recusa-se a divulgar a fórmula".
Isso é pura paranóia. O laboratório que descobrisse "a cura do câncer", "a fórmula contra a cárie, estaria entupido de dinheiro. Se o raciocínio fosse verdadeiro, não teríamos hoje a vacina contra a poliomielite, nem a vitória contra a tuberculose.
Um ratinho com orelhas humanas! Talvez seja necessário. Talvez não seja, devendo-se ao puro sensacionalismo.
Trata-se da vontade quase esportiva, quase infantil, que os cientistas têm em manipular a natureza. Para qualquer cientista, a natureza é de certo modo o irmão inimigo, o confidente a ser traído, o adversário com quem celebramos um acordo de paz favorável a nós mesmos.
É assim que, no rato de orelha humana, celebra-se o poder manipulatório da ciência sobre uma natureza hostil. Não devemos satisfações estéticas ou morais diante da biologia própria deste camundongo acidental. Nosso poder se afirma na monstruosidade produzida.
Um delírio de onipotência está claramente em curso. Prazeres de professor Pardal, de boneca Emília na "Reforma da Natureza" de Monteiro Lobato.
Arrisco assim a seguinte hipótese. É função da ciência negar a natureza. Não serve para outra coisa. Mas esse processo, por sua vez, é também natural. Pois a natureza humana nada mais é do que uma negação industriosa da natureza "natural". Só que a idéia de uma "sabedoria da natureza" é puramente ideológica, pura projeção do cérebro humano a dar sentido fictício às forças cegas, celulares, da vida orgânica. Assim como é também ideológica a idéia de que o Homem, com H maiúsculo, está destinado a dominar a Natureza, com N maiúsculo.
A própria oposição entre Homem e Natureza é ideológica, falsa. O diabo é que a idéia oposta, de que só o respeito à Natureza salvará o homem, é mais ideológica e falsa ainda. Estamos "naturalmente" condenados a combater a natureza. Mas um camundongo com orelha humana é mais a interpretação sensacionalista dessa idéia do que uma realização triunfal de nosso destino.

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