São Paulo, sábado, 28 de outubro de 1995
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Uma cultura atrás das grades

LUIZ VICENTE CERNICCHIARO

A história da pena, já se escreveu e com razão, é a história da humanização da pena. O desenrolar das idéias e instituições penais evidencia, no momento inicial, reação da vítima, pessoalmente desenvolvida e da maneira que lhe conviesse. Passa-se pelo talião. No período científico cessa a vingança privada; o Estado torna-se o único titular do poder de punir. Abre-se então amplo leque de sugestões para explicar a pena.
A reforma do Código Penal brasileiro de 84 registra ser "necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime" (art. 59). Coloca-se hoje em dia importante questão. Apesar da solene proclamação da finalidade, a pena revela-se eficiente?
Não é exagero: a prisão está em crise. Não se evidencia útil como resposta à delinquência. É notório, os estabelecimentos penais não conferem condições para a execução alcançar seu objetivo. Não educa, não reeduca. Ao contrário, deseduca.
Apesar de a nossa cultura ainda aferrar-se ao binômio crime/cadeia, reconhece-se que a prisão não é eficiente. Todos concordam: a prisão é maléfica e, o que é pior, o condenado, além dos anos perdidos atrás das grades, quando retorna fica estigmatizado pela sociedade que o rejeita.
Tome-se a afirmação quanto à criminalidade comum, cuja clientela é formada por pessoas de baixa renda, sem condições econômicas e sociais para enfrentar as chamadas instâncias formais de combate à criminalidade: polícia, Ministério Público e magistratura. O problema revela outras características quanto à denominada "cifra dourada", correspondente à criminalidade econômica, genericamente batizada como crime do colarinho branco.
Surgem então sugestões para substituir a pena de prisão -as chamadas "formas alternativas". A mudança de sistema, do ponto de vista substancial, não se faz somente com a modificação da lei. Impõe-se modificar a cultura.
O Código Penal brasileiro, ao lado das penas privativas do direito de liberdade, adota penas restritivas de direitos. É certo, substitutivamente. Apesar disso, não obstante mais de dez anos de vigência, não se implantaram. Ao contrário, há generalizada desconfiança de representarem enfraquecimento no combate ao delito e, pior, incentivo à criminalidade. Cumpre efetivar as formas alternativas. Aliás, imperativo da Constituição da República (art. 5º).
Em primeiro lugar, lembre-se, a pena atende ao interesse público. Há, pois, de extrair-se vantagem para a coletividade. Contraditório ser instrumento que traga desvantagem. A história, nesse ponto, fala por si mesma!
Impõe-se, via legislação, ensejar ao magistrado formas alternativas adequadas às características objetivas e subjetivas do caso concreto. Sem perder as garantias da taxatividade, a sanção precisa conferir ao julgador espaço para o poder de discricionariedade. Só assim far-se-á adequação do delito com a pena, em função do agente.
A prisão pode e deve ser substituída, exemplificativamente, pela perda de bens, multa, prestação social alternativa, restrição, suspensão ou interdição de direitos. Em termos de interesse social não há vantagem alguma em mandar alguém para a prisão. Tornar-se-á ocioso, perderá anos (medidos existencialmente, arruina a vida de qualquer pessoa). Assim, reparar o dano será útil. Tanto a sociedade como a vítima serão, pelo menos em parte, recompensadas.
O legislador e o juiz, porque projetam cultura, não podem dela se afastar de um momento para o outro. Caso contrário a lei e a sentença serão carentes de eficácia. E o direito, todos sabem, reclama um mínimo de eficácia. Por isso, transitoriamente, talvez fosse útil e oportuno reservar as penas privativas do exercício do direito de liberdade a alguns casos, ou seja, àqueles que afrontam de modo agressivo e injustificável os valores maiores da sociedade, mantendo-a insegura.
Se a natureza não dá saltos, o mesmo ocorre com a cultura. Politicamente será oportuno manter hoje, como exceção, o que se deseja eliminar amanhã. Todavia enumerando as hipóteses extremas e destinadas unicamente a quem, com o injustificável comportamento, revela ser incapaz de convivência.

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