São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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'Scilingo não se recuperou do choque'

Primeiro militar a admitir a existência dos 'vôos da morte' jogou 30 pessoas ao mar em duas operações, diz Verbitsky
Leia mais trechos da entrevista com Horacio Verbitsky, autor de "O Vôo".

Folha - Como foi a atuação do capitão Scilingo?
Horacio Verbitsky - Ele participou de dois vôos. No primeiro, atirou ao mar 17 pessoas. No outro, 13. É uma pessoa que, passados 20 anos, não se recuperou do choque. Está perturbado.
Folha - A razão que o levou a denunciar esses fatos foi apenas de consciência?
Verbitsky - Foi um longo processo. Em 1993, Menem pediu a promoção a capitão de navio de dois oficiais, Juan Carlos Rolón e Antonio Pernías, que haviam estado na Esma (Escola de Mecânica da Armada) com Scilingo.
Eu publiquei no "Página/12" antecedentes de ambos. Eles haviam participado do sequestro e tortura do grupo fundador das Mães da Praça de Maio, em 77, e do assassinato das freiras francesas Alice Domon e Leonie Duquet.
Com isso, se reabriu a discussão sobre a "guerra suja". O Senado decidiu negar a promoção dos oficiais. Naquele momento, Scilingo entrou em contato comigo.
Folha - Como o capitão Scilingo se apresentou ao sr.?
Verbitsky - Ele dizia que era uma injustiça o que ocorria com Rolón e Pernías, porque todos haviam feito a mesma coisa. Não entendia porque outros, que teriam dado as ordens, tinham sido promovidos ao posto de almirante anteriormente. Scilingo se apresentou com um justiceiro dentro da Marinha, como um defensor de seus companheiros.
Folha - Mas ele acabou mudando de posição.
Verbitsky - Sim. Começamos uma longa discussão, que se estendeu por 12 ou 13 encontros.
Ele mesmo concluiu que, se os altos mandos não assumiram a responsabilidade 20 anos depois, estaria provado que os atos foram criminosos. Scilingo assumiu que foi um assassino. Aí ele chorou.
Folha - Ele contou como reagia depois dos vôos?
Verbitsky - Como militar, Scilingo estava de acordo com o que fez. Era uma ordem de seus superiores, que tinha o aval das autoridades eclesiásticas.
Como homem, isso pesava. Sentiu-se mal desde o primeiro vôo. Tomou uísque e dormiu o dia inteiro. Depois, confessou-se com um capelão da Esma.
Folha - Por que Scilingo não participou de outros vôos? Ele chegou a se recusar?
Verbitsky - Não participou porque não foi escalado. Era uma tarefa rotativa, todos tinham de executá-la. Ele era um mecânico encarregado da área de automotores da Esma.
Folha - Quantas pessoas foram assassinadas nestes vôos?
Verbitsky - Scilingo calcula que, somente de presos da Esma, foram entre 2.000 e 3.000. Os vôos eram todas as quartas-feiras, às vezes também aos sábados. Levavam entre 15 e 20 pessoas por vez, entre 1977 e 1978.
Folha - Na época, não houve pelo menos denúncias desses fatos em outros países?
Verbitsky - Eu mesmo denunciei em 1976, com a publicação em jornais e agências de notícias estrangeiras de uma investigação jornalística chamada "História da Guerra Suja na Argentina".
Folha - Os vôos eram adotados apenas pela Marinha? Por quem foram decididos?
Verbitsky - Não, eram adotados por Marinha, Exército e Aeronáutica. Eu creio que foi decidido explicitamente pela Junta Militar, ou seja, por Jorge Videla (Exército), Emílio Massera (Marinha) e Orlando Agoti (Aeronáutica).
Esses três hoje estão em liberdade, mas não são mais considerados oficiais. Eles foram destituídos das Forças Armadas. Suas mulheres recebem pensões de viúvas.
Folha - A sociedade argentina parece não se conformar com o fato de que os militares tenham sido libertados pelos governos Alfonsín e Menem. Essa impressão lhe parece correta?
Verbitsky - Sim. Há uma clara atitude de rechaço. Funcionários do governo tentaram organizar um torneio de natação na Esma entre colégios secundários. As escolas se negam a participar.
Folha - Como o sr. avalia as admissões dos chefes do Estado-Maior do Exército e da Marinha, general Martín Balza e almirante Enrique Molina Pico?
Verbitsky - Balza, na verdade, colocou como norma a doutrina da desobediência devida. Ele disse que é culpado tanto quem dá a ordem quanto quem a cumpre. Quem recebe uma ordem imoral está obrigado a não cumpri-la.
Essa é a doutrina moderna que rege os exércitos dos países que padeceram a Segunda Guerra.
Folha - A Igreja Católica da argentina formula uma mea culpa. Qual foi seu grau de responsabilidade na "guerra suja"?
Verbitsky - Houve um campo de concentração que funcionou em uma propriedade da Igreja. Quando veio a Comissão de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) à Argentina, a Esma transferiu os presos a uma ilha comprada da Igreja com documentos de um desaparecido.
Agora, ela vai fazer uma hipocrisia a mais. Nunca vai assumir a cumplicidade direta que teve. Vai se reprovar por não haver denunciado tortura e desaparecimentos.
Mas seu maior pecado foi sua ação. E isso, ela não vai dizer. O bispo José Miguel Medina esteve nas prisões da Província de Jujuy pressionando para que os presos falassem.
Folha - Como foi o comportamento do presidente Menem nos cinco anos em que esteve preso?
Verbitsky - Alguns livros dizem que teve um comportamento pouco digno, pusilânime. Depois, com a democracia, eu tive uma briga duríssima com Menem, que chegou a fazer o elogio à tortura.
Folha - Quando foi isso?
Verbitsky - Em 1994. Menem afirmou que graças às Forças Armadas o país havia vencido a guerra contra a subversão. Ele me acusou de ser um terrorista que, com a caneta, trataria de destruir as Forças Armadas.

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