São Paulo, terça-feira, 31 de outubro de 1995
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Velhos demônios

ANDRÉ LARA RESENDE

Há um conto de John Updike que abre com a cena de uma família na piscina. O protagonista tinha então três ou quatro anos. O pai na água o estimula a pular e garante que vai segurá-lo. "Confie em mim".
A calma e o ar sereno do pai, em pé no azul, são suas últimas impressões antes das bolhas, do pânico ao afundar, no que lhe pareceu um tempo longuíssimo até ser agarrado.
Ainda desesperado, em busca de ar, suspenso nos braços do pai fora da piscina, ouve o estalo do tapa que a mãe desfere no rosto do pai.
O conto se chama "Trust Me", como, se não me engano, se chama também o livro. Vida afora a personagem reencontra-se, de um lado ou do outro, com o mesmo tema: a traição de quem pede confiança e a tentação da maldade.
É um lugar-comum, uma platitude, afirmação de que no homem convivem o mal e o bem, como lembrou Manuel de Oliveira, o diretor de cinema português que veio lançar seu último filme, "O Convento". Pois o fato de ser uma platitude não a torna menos verdadeira.
Oliveira conta, em entrevista à Folha, que um amigo uma vez lhe disse que os cães são como os homens: têm um fundo bom e um fundo mau; se puxados para o mal, farão o mal, se puxados para o bem, farão o bem.
Mas o que "puxa" para o bem ou para o mal? Eis a questão. Será possível encontrar a fórmula que desperta o bem e adormece o mal? As grandes utopias estão em baixa. As utopias sociais, baseadas na tentativa de uma igualdade por coerção, parecem ter sido enterradas, ou pelo menos esquecidas, com o colapso do comunismo.
A razão moderna é antiutópica e as mais importantes contribuições da filosofia e da ciência neste século parecem estabelecer limites para o conhecimento pela razão.
Deus anda em baixa filosófica, justamente quando tudo parece indicar que não há como encontrar a verdade, ou a certeza absoluta, sem apelar para a sabedoria divina. O resultado é o domínio do pragmatismo e do relativismo.
Estou me desviando do assunto e enveredando por um atalho ainda mais complexo do que o que eu queria dizer. Voltemos à questão da confiança e da tentação da maldade.
Somos permanentemente expostos a situações onde temos de decidir entre confiar e desconfiar. Sabemos -Oliveira está certo- que ninguém é de todo confiável: há sempre o lado mau, a tentação da vantagem, ou a tentação da maldade pura, gratuita.
Sustento que nas relações pessoais é preciso confiar. Confiança gera confiança e induz a um comportamento digno de confiança. Via de regra, pelo menos.
As exceções são muitas e a decepção é dolorosa. Talvez por isso seja tão difícil pautar-se por essa regra.
O desencontro, a confiança depositada e quebrada, ou percebida como tendo sido quebrada quando verdadeiramente não o foi, estão na essência da dramaturgia. São as questões chaves do drama e da tragédia humana.
Pois se nas relações individuais a confiança é fundamental e menos praticada do que seria desejável, nas relações sociais, de grupos, partidos, igrejas, uma maior dose de desconfiança parece-me recomendável.
Temos a vocação para a credulidade em grupo. Talvez não se trate verdadeiramente de confiança, mas de responsabilidade dividida, anulada. O lado mau coletivamente liberado contra inimigos inventados une e reassegura.
Mas a história já mostrou o quanto é perigoso. Não se deveria brincar com os velhos demônios. Assim como o divino e as utopias, eles podem estar só adormecidos.

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