São Paulo, terça-feira, 31 de outubro de 1995
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"Fujimorização" à moda tucana

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Votei em Fernando Henrique por entender que, mais do que qualquer outro candidato, compreendera que os governantes estão a serviço da sociedade e não a serviço dos governantes. Na dupla condição de cidadão e eleitor, a quem o presidente da República deve servir como a outros 155 milhões de brasileiros, é que trago a público algumas das preocupações que me têm assolado nos últimos tempos para ser contestado, se não tiver razão, ou para alertar os demais políticos, se razão tiver.
Creio que está em andamento um processo de "fujimorização" do Brasil. Não pela via das armas, mas do encanto presidencial, que vai levando de roldão a resistência de seus opositores e fortalecendo a submissão de seus aliados, inclusive não-políticos.
Fujimori, ao dar o golpe no Peru, partiu do princípio de que, com os políticos, as estruturas e as leis que o país possuía não poderia governar. Apenas se alterasse radicalmente a mentalidade da classe dirigente, o corporativismo da administração e o arcaísmo das leis poderia dar condições de governabilidade ao povo peruano, razão pela qual rompeu a legalidade vigente, eliminou a oposição e impôs seu estilo de governo que perdura até hoje, mesmo depois das duvidosas eleições que o reconduziram à presidência. Ainda no domingo dizia, pelas páginas da Folha, que com democracia não é possível governar o país.
O diagnóstico da equipe tucana do presidente da República é o mesmo. A Constituição Federal, que tanto o senador Fernando Henrique e o governo Mário Covas defenderam -ao lado de Celso Bastos e Manoel Gonçalves Ferreira Filho fui chamado de "terrorista" por Fernando Henrique, em programa "Roda Viva" de 1987, por ter declarado ser espúrio o processo que dera à Comissão de Sistematização da Constituinte poderes absolutos para tornar ainda mais corporativista o texto supremo- é, de rigor, um texto com méritos e deméritos, sendo seu principal demérito ter formatado uma Federação maior do que o povo.
Por outro lado a máquina administrativa não funciona. Mesmo arrecadando 31% do PIB em tributos -a mais alta carga tributária da história do Brasil e uma das maiores do mundo-, o déficit público aumenta.
É de se lembrar que os 31% representam uma carga tributária em lei superior a 50% do PIB e equivalente a 100% do Produto Privado Bruto! Nenhum país do mundo tem percentual tão elevado! E o déficit público se eleva porque todo o esforço tributário é utilizado para sustentar as esclerosadas máquinas de 5.000 entidades federativas.
Com efeito, os 120 mil legisladores pátrios, os 5.000 Poderes Legislativos, os 5.000 Poderes Executivos e os 28 Poderes Judiciários, além da fantástica administração indireta pouco eficiente, onde se incluem as estatais, consomem toda a renda tributária, não se comportando, os políticos brasileiros -além dos limitados interesses que defendem ou representam, por ignorância ou conveniência-, à altura do desafio.
Por essa linha de raciocínio é natural que o presidente da República pretenda alterar a Constituição, procurando tornar o país governável, reduzindo as estruturas e submetendo os políticos à sua maneira de ser, assim como impondo à sociedade seu estilo de governar, com o mínimo de oposição possível.
Creio eu que tudo isso obterá o presidente se passarem seus projetos de reforma constitucional sem modificações. Os direitos do cidadão, todavia, ficarão sensivelmente atingidos.
A reforma tributária possui cinco disposições que permitirão ao presidente da República governar sem oposição dos Estados e com o dinheiro da sociedade transferido para os cofres públicos por meio de medidas provisórias.
A primeira delas é a eliminação da lei complementar, da expressão "urgente" e do princípio da anterioridade para instituição de empréstimos compulsórios destinados a investimento público. Sem tais proteções poderá o presidente da República instituí-los por medidas provisórias e reeditá-las tantas vezes quantas desejar, visto que a vedação de utilização desses veículos legislativos nas emendas constitucionais nº 6 e 7/95 dizem respeito apenas à "regulamentação" de dispositivos constitucionais e não à "instituição" de tributos já "regulamentados" pela Constituição.
Se passar tal dispositivo, a dívida pública interna, que duplicou desde o Plano Real -passou de US$ 50 bilhões para US$ 100 bilhões- poderá ser reduzida de um dia para outro, mediante empréstimo compulsório instituído por medida provisória, transferindo-se recursos do sistema financeiro para as burras governamentais.
À evidência, se os recursos forem transferidos para o Tesouro e não apenas "bloqueados" como no tempo do presidente Collor, os mandados de segurança não servirão para liberá-los, pois apenas serão cabíveis ações de repetição do indébito de rito ordinário e de duração média de cinco anos para o trânsito em julgado, fora a demora de execução dos precatórios.
Pela segunda, poderá o presidente da República instituir tributos sem ocorrência do fato gerador da obrigação, como antecipação de receita eventual, com o que fortalecerá consideravelmente o poder impositivo do poder público.
O terceiro ponto está na linha dos empréstimos. Ao retirar a necessidade de lei complementar (que requer para votação o quorum de 50% + 1 dos parlamentares) e ao permitir a criação de novos impostos "cumulativos", afastando a necessidade da "não-cumulatividade" na competência residual da União, poderá instituir novos impostos por medida provisória -não falo de regulamentação, mas de instituição-, acrescentando ao arsenal fechado de impostos da lei maior elenco infinito de novas exações.
Se aprovada estivesse a emenda, o ministro Jatene não precisaria de uma emenda constitucional para instituir seu CPMF, mas apenas de uma Medida Provisória. Dizem os arautos presidenciais que S.Exa. não pretende se utilizar de tais mecanismos excepcionais pela eliminação das atuais garantias dos contribuintes. Ora, se pretende não utilizar, pergunto, para que criá-los?
O quarto ponto é a transferência da competência impositiva dos Estados para a União no seu principal imposto (ICMS) e a recuperação, para a União, dos cinco impostos que perdera em 1988, além de alargar-se a base de cálculo do IPI.
Na reformulação da sistemática do ICMS poderá o Senado criar dois regimes jurídicos, permitindo que Estados selecionados, provavelmente de acordo com suas maiores ou menores vinculações ao Poder Executivo Federal, tenham, simultaneamente, a incidência na origem e no destino, de tal forma que um Estado de oposição poderá sofrer o impacto de resolução senatorial retirando-lhe a incidência do ICMS nas operações interestaduais, seja nos produtos que envie para outros Estados (incidência de destino), seja nos produtos que deles receba (incidência de origem).
Sem poder impositivo próprio, os Estados só terão um caminho, ou seja, o alinhamento sem condições ao Executivo Federal.
A sociedade, por outro lado, se ficar sufocada pela carga tributária -que será consideravelmente elevada (é o quinto ponto)-, poderá ter o sigilo bancário quebrado sem autorização judicial, servindo-se dessa arma contra contribuintes contestadores como forma de desestimulá-los a recorrer ao Judiciário.
Por fim, para completar, na reforma administrativa permite o projeto a demissão de concursados estáveis e a admissão de não-concursados.
Dessa forma poderá o governo livrar-se de todos aqueles que não comungarem de suas idéias, mesmo que concursados, e contratar aqueles que delas comunguem, sem concurso, formando uma equipe própria, coesa e de poderes ilimitados dentro do governo, com respeito aos novos dispositivos constitucionais, se aprovados.
Estou convencido de que o que aqui apresento é, por enquanto, mera hipótese de trabalho, mas hipótese que me preocupa. Por essa razão não me refiro sequer a possíveis inconstitucionalidades da proposta, mas apenas ao fantástico poder que tais reformas darão ao presidente da República.
Lembro que, mesmo sem tais poderes, já há sinais de "fujimorização" à moda tucana. O decreto-lei 2.321 permite o regime de administração temporária tanto para bancos estatais como privados. O governo federal beneficiou os bancos dos governos tucanos e atingiu o maior banco de um Estado cujo governador é liberal. Nos bancos tucanos colocou o quádruplo do dinheiro de todos os contribuintes brasileiros do que no banco baiano, mas prejudicou apenas os depositantes do banco baiano e não aqueles dos bancos tucanos.
Por que não aplicou o princípio da isonomia esculpido no decreto-lei 2.321? Por que os depositantes do mais antigo banco situado em um Estado de governo liberal foram prejudicados e não os dos bancos estaduais dos governos tucanos se estes custaram à nação quatro vezes mais recursos que aquele?
No início do ano o ministro Nelson Jobim, em conferência a que assisti com Saulo Ramos, Celso Bastos, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e outros constitucionalistas, disse que o objetivo do governo era "destribunalizar" a Constituição para que o Executivo governasse sem as interferências do Judiciário. A proposta de emendas parece estar nessa linha de raciocínio.
Embora concorde com o presidente da República sobre muitas das insuficiências do texto constitucional, estou também convencido de que seria necessário diminuir o Estado para que a sociedade crescesse, mas sem perda de garantias, e não apenas aumentar consideravelmente o poder do Executivo Federal sobre toda a Federação à custa de direitos e garantias individuais.
Se a proposta do governo passar sem alterações, não tenho dúvida de que se abrirá um campo real para a "fujimorização" do país, sem o recurso às armas. Será esse o projeto do governo? É o que gostaria de saber, como eleitor do presidente e cidadão do por enquanto Estado Democrático de Direito brasileiro.

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