São Paulo, quarta-feira, 1 de novembro de 1995
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Mikhalkov subverte infância da filha Ana

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O mundo parecia ter envelhecido subitamente": a frase é dita pelo diretor russo Nikita Mikhalkov, em seu filme "Ana dos Seis aos Dezoito", em cartaz no Espaço Banco Nacional.
Mikhalkov descreve a queda do regime soviético. Ana é sua filha; aos seis anos, ela vivia sob o domínio de Leonid Brejnev, aos sete chorou a morte do líder; vieram Andropov e Tchernenko; depois, Gorbatchev; finalmente Ieltsin. Doze anos em que tudo muda na Rússia, ou melhor, na velha União Soviética. E muda com extrema rapidez, numa mistura de determinação histórica e de surpresa, de reviravolta e de fatalidade.
O cineasta Mikhalkov teve a idéia de acompanhar essa derrocada pelos olhos de sua filha Ana. Resolveu filmar a menina, ano após ano, fazendo-lhe as mesmas perguntas: "O que você mais quer?", "O que você mais teme?", banalidades desse gênero.
Mikhalkov impõe esse questionário a sua filha, por longos anos. O filme intercala as respostas de Ana com cenas de época e com comentários do autor.
Apesar de bem ruim, o filme merece ser assistido. Mesmo quem seguir pelos jornais as mudanças na União Soviética, fica espantado pelos contrastes, pela velocidade, pelas surpresas do processo.
Há quanto tempo não víamos uma cena de noticiário com Brejnev? Aquela cara de macaco solene, que mantinha como relíquia de sua depilação recente as espessas sobrancelhas, aparece no filme triunfante e morta; Andropov, espécie de fantasma albino, é chorado por multidões num daqueles esplêndidos e grandiosos funerais do comunismo; revemos as Olimpíadas de Moscou -as lágrimas do ursinho Micha descendo ao longo do estádio; ressurge a elegância de Gorby em Nova York, num inverno ameno, numa visita triunfal, usando um belo e leve chapéu, e não aqueles sinistros gorros de pele de mink que a cada aniversário da Revolução protegiam os líderes congelados no desfile militar.
Tudo isso reaparece -e, com efeito, é como se o tempo tivesse passado depressa demais. Mesmo a comemoração da queda do Muro de Berlim, evocada em imagens bombásticas, suscita em nós um certo estranhamento: seja porque, quando o fato ocorreu, não estávamos preparados para ele -de modo que as cenas preservam alguma irrealidade- seja porque essa vitória democrática, ocorrida em 1989, já parece distante no tempo. Foi absorvida e esquecida sem que saibamos direito como. Foi fácil demais, rápida demais, com um quê de miraculoso e fútil, que não capacita o espectador a associá-la a um fato histórico; pela ausência de sangue derramado, talvez.
Nesse sentido, ganha involuntária eloquência o fato de que tudo seja visto, no filme de Mikhalkov, pelos olhos de uma criança. Nosso espanto diante das transformações teve um efeito algo de infantil, de passivo e maravilhado.
Há vários problemas, contudo, em "Ana dos Seis aos Dezoito". No começo, é curioso ver a menina respondendo às perguntas do pai. Com seis anos, ela dizia que o seu maior sonho era ganhar um crocodilo de presente. Aos sete, já se dá a transformação: a criança perde a graça, e reproduz um discurso em homenagem a Brejnev, que acabava de morrer.
Com o tempo, ela vai percebendo que seu pai é um chato de galochas; que as perguntas que ele faz são tão banais e genéricas quanto as respostas que ela pode dar, ou quer dar. Diz inevitavelmente que deseja a paz entre os povos -eram os tempos de Reagan e da Guerra nas Estrelas-; quer que família permaneça unida e que todos em casa se amem muito; envergonha-se a cada instante, e à medida que a adolescência se manifesta, Ana se torna mais evasiva, menos espontânea, mais adulta.
Mais adulta até que seu pai -esse o destino do conflito geracional-, pois percebe que o pai ainda a trata como criança, fazendo-se ele próprio de mais criança do que é, e disfarça essa percepção, submetendo-se ao questionário, invariável, que seu pai lhe faz. São cenas incômodas de ver, falta transparência e franqueza; falta Glasnost, na verdade, entre pai e filha; e o pai não tem inteligência para perceber o que se passa.
Ana, quando criança, repetia clichês do regime soviético. Vai crescendo, e tenta responder com os clichês que passavam pela cabeça do pai. Mais tarde, responde com seus próprios clichês, numa generalidade que é defesa diante dessa espécie de Brejnev doméstico que a entrevista anualmente.
Trata-se de um filme frustrado, em que Mikhalkov esconde mal a frustração diante das respostas da filha, e não parece consciente da frustração que ele impõe ao material de que tratou.
Mesmo assim, esse material é riquíssimo. Vemos trechos de espetáculos teatrais solenes, glorificando o leninismo, ao lado de cenas das festas de aniversário de um cantor anti-regime, ídolo pop na Rússia, espécie de Ney Matogrosso da Perestroika. Excertos de um documentário sobre escoteiros de todos os países da União Soviética, em edificante preto-e-branco, contrastam com os depoimentos de soldados que participaram da invasão do Afeganistão.
Esse tipo de confronto visual é bem fácil de fazer, e Mikhalkov não se furta a comentários ressentidos, do gênero "Veja como nos enganaram", "Veja que grande farsa era o comunismo". Todavia, a um espectador contemporâneo, o filme talvez esclareça muito sobre o que se passou de fato na Rússia.
Fica chocante a diferença entre Brejnev e Gorbatchev. De um lado, a famosa "ossificação" do regime. Sem falar de múmias como Andropov e Tchermenko. É como se, entre outras causas, o regime soviético tivesse acabado por falta de charme, por falta de sex-appeal político. Não havia líderes capazes de levar adiante a bandeira leninista, uma vez que a ortodoxia militarista simplesmente abafava qualquer ímpeto de criatividade.
Talvez isto explique a sobrevivência de Fidel Castro em Cuba. O culto à personalidade não é uma excrescência nesses regimes. Quanto maior a disciplina e o totalitarismo, mais de concentra na figura do chefe uma expectativa de imprevisibilidade, de capricho pessoal, de achaques nervosos, broncas, sorrisos, sermões, piadas. Uma vez extinto o culto à personalidade, depois de Stálin, o comunismo se enfraqueceu.
Outro efeito curioso das cenas mostradas por Mikhalvkov é a extrema ineficiência retórica dos grandes espetáculos soviéticos. O orador declamando poemas leninistas surge, para a sensibilidade contemporânea, como semelhante a um Ruy Barbosa, num empolamento dramatizado por intervenções de música clássica.
Já a oposição era pop, roqueira, americanizada. Um bom comunista teria infarto ao ver as celebrações democráticas televisionadas na Rússia por ocasião de cada aniversário do Ney Matogrosso soviético: um quadro de "decadência", com gente feia fazendo caretas, gordões seminus e maquiados, barulhada, guitarras...
O totalitarismo prefere as cenas "sadias"; camponesas rosadas cantando, ginastas, coreografias. Não é à toa que o balé clássico prosperou na URSS.
O que me faz pensar o seguinte. Será que toda a derrocada comunista foi mesmo um efeito da ineficiência econômica do sistema? Do desejo de liberdade de seus cidadãos? Da esclerose decisória? Menos que liberdade, eficiência econômica ou renovação política, a principal aspiração dos russos, desde os anos 60, eram as calças jeans, discos dos Beatles, chicletes tutti-frutti, hambúrgueres.
Quem venceu o comunismo não foi a liberdade, foi a cultura de massa americana. E a tecnologia japonesa, pois estava ficando claro que, com TV a cabo e videocassetes não seria mais possível manter o país sob uma redoma ideológica, à mercê dos discursos altissonantes e mitologias nacionais.
Não era essa, afinal, a "ineficiência econômica" dos soviéticos? Sua incapacidade para produzir chicletes e aparelhos portáteis de CD? Certamente, há uma ligação entre não poder fazer bens de consumo, especialmente na área de comunicação, e o ato de o regime ser liberticida.
Mas fica a sensação de que, perdidas as ilusões e os cinismos do regime, ganhou-se muito pouco do ponto de vista dos ideais humanos. Não é à toa que Mikhalkov, de forma constrangedora, termina seu filme com um apelo à religião, ao misticismo mais reacionário.

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