São Paulo, quinta-feira, 2 de novembro de 1995
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Suassuna vai dar aula de Brasil em SP

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Antônio Nóbrega tanto fez que tirou Ariano Suassuna do Recife. No teatro Brincante, segunda-feira, o autor de "Auto da Compadecida" faz uma das suas "aulas-espetáculos" sobre a cultura brasileira.
O mestre de Antônio Nóbrega, de "Brincante", e de Romero de Andrade Lima, de "Auto da Paixão", duas das mais marcantes peças dos anos 90, vai subir ao palco sozinho e sem saber bem o que apresentar.
A "aula-espetáculo" foi a forma encontrada por Ariano Suassuna, secretário de Cultura em Pernambuco, para levar a cultura brasileira, popular ou erudita, aos estudantes do Estado.
Um prolongamento do movimento Armorial, que ele criou há duas décadas e que produziu o Quinteto Armorial, de Antônio Nóbrega, a "aula-espetáculo" está dentro do que o escritor chama de "tradição da commedia dell'arte e do cantador nordestino".
No palco, ele improvisa. Pode tanto fazer um teste com o público, chamado a distinguir entre um quadro de Paul Klee e um detalhe da Pedra do Ingá, como recitar padre Vieira ou Botelho de Oliveira.
O efeito é o questionamento da divisão entre arte erudita e arte popular, "que alguns chamam de arcaica".
Alguns poderiam chamar o próprio Ariano Suassuna de arcaico. Ele admite ter problemas, por exemplo, com o telefone. "Eu realmente, por telefone, eu fico meio perturbado, meio tolhido."
Mas foi por telefone que deu uma longa e paciente entrevista. Falou do teatro, da literatura do Brasil, dos separatistas, até de Edir Macedo -um tema que ficou de fora na edição, mas que causou muitas risadas do autor, católico.
A seguir, trechos selecionados.

Folha - O que é a aula-espetáculo?
Ariano Suassuna - Olha, eu vou apresentar uma versão pessoal da aula-espetáculo. A aula-espetáculo é uma aula que eu dou sobre diversos assuntos ligados à cultura e que eu ilustro com a participação de músicos, dançarinos, com obras de artes plásticas que eu mostro. Isso é o que eu chamo aula-espetáculo. Em São Paulo eu vou apresentar uma versão pessoal da aula-espetáculo.
Folha - No caso, não vêm os músicos, mas o sr. traz outras atrações, como as obras de artes plásticas?
Suassuna - Eu vou apresentar reproduções das obras, porque ficaria muito difícil eu levar as próprias obras. Eu estou levando fotografias grandes de obras.
Folha - Romero de Andrade Lima relatou que o sr. também declama poesias, e que declamou, por exemplo, um dos sermões do padre Vieira. O sr. pretende fazer isso aqui?
Suassuna - Aí varia um pouco, porque a aula-espetáculo, dentro da tradição da commedia dell'arte e do cantador nordestino, ela tem um núcleo que é mais ou menos o mesmo. Agora, muda de acordo com o público e eu então improviso. Não tem nenhuma parte decorada não, mas um núcleo. O resto vai de acordo com o auditório.
No dia que recitei o sermão, foi porque estava fazendo uma defesa das qualidades literárias da língua portuguesa. Eu não tinha planejando não, mas tenho uma memória muito boa e, de tanto ler o sermão, eu decorei um pedaço que me parece mais importante, e recitei diante dos alunos. Estava havendo um congresso, tinha estudante do Brasil inteiro.
Folha - E como os estudantes receberam?
Suassuna - Olha, eu fiquei entusiasmado, porque quando terminei de recitar... aliás, eles interromperam no meio, com aplausos. Quando eu terminei, a sala quase veio abaixo, de palmas. Você vê, um escritor do século 17, e a juventude atual, tão malsinada, aplaudiu, aplaudiu num movimento espontâneo.
Folha - O sr. acredita que existe um novo interesse pela cultura brasileira, pela cultura popular em particular?
Suassuna - Pela cultura brasileira de um modo geral. Eu não me interesso somente pela cultura popular. Eu falo muito na popular porque ela é mais marginalizada, mas o meu interesse é pela cultura de língua portuguesa em geral. Você vê, quando eu cito padre Vieira estou defendendo a cultura erudita de primeira ordem. Eu protesto contra a discriminação que se faz contra a cultura popular, mas não vou fazer discriminação contra a erudita. Seria dar razão aos que fazem isso com a cultura popular.
Folha - Romero, por influência sua, é apaixonado por esta cultura do Brasil colonial de padre Vieira, particularmente do Nordeste. Eu gostaria de saber qual é a visão que o sr. tem dos autores de então, como Gregório de Matos?
Suassuna - Olha, eu gosto muito dos poetas baianos do século 17, inclusive Gregório de Matos, mas não só. Eu gosto muito de Manuel Botelho de Oliveira e de frei Manuel de Santa Maria Itaparica, principalmente do Manuel Botelho de Oliveira, que é melhor do que todos eles. Agora, gosto muito também de um pensador chamado Matias Aires, paulista, que escreveu as "Reflexões sobre a Vaidade dos Homens".
Evidentemente, são escritores de um país que estava nascendo, que estava se formando. Dentro dessa linha, eu gosto muito porque eu gosto muito dos barrocos ibéricos. Gosto muito de Góngora, de Calderón de la Barca e de Cervantes, principalmente dos dois últimos. Cervantes e Calderón são dois dos mestres a quem eu devo muito. Os brasileiros que eu estou citando são reflexos menores menores desses grandes escritores espanhóis do século 17.
Folha - São escritores menores?
Suassuna - São menores em relação a Cervantes. Aí eu acho que o próprio padre Vieira também é. Agora, isso não significa que eles não sejam grandes autores, principalmente o padre Vieira. O padre Vieira é importantíssimo, inclusive porque, tendo escrito em português, ele me mostrou, a mim, pessoalmente, que a língua portuguesa é uma língua dotada de grandes recursos, tanto para o teatro quando para a literatura.
Folha - O sr. tem uma grande admiração por escritores da Bahia, da região...
Suassuna - Mas eu tenho também pelos outros. Eu acabo de lhe citar Matias Aires, que eu admiro muito. Eu admiro Matias Aires tanto quanto eu admiro a Vieira. Como escritor, é meio esquecido, mas que eu acho importantíssimo.
Folha - Como o sr. vê a cultura urbana sulista expressa nas peças do Plínio Marcos, que é um autor de São Paulo?
Suassuna - Olha, eu não conheço o teatro de Plínio Marcos não. Por mais estranho que lhe pareça... Eu sei quem é ele, mas eu não conheço, eu nunca vi uma peça dele. Aqui no Recife se monta pouco. E eu vou pouco a teatro.
Folha - Mas o sr. não parou de escrever para teatro, de publicar, como no caso da última peça, no final dos anos 80.
Suassuna - Eu não publiquei não, em livro. Eu encenei. É uma peça chamada "As Conchambranças de Quaderna". Quaderna é o nome do personagem da "Pedra do Reino", que eu botei também nesta peça. É o narrador.
Folha - É uma peça nova.
Suassuna - É. Ela é formada por três peças em um ato. Das três, uma já tinha sido encenada. Aí eu escrevi mais duas e escrevi uma ligação. Foi encenada aqui no Recife e foi quando eu pedi para que o grupo pedisse a Romero para fazer os cenários e os figurinos. Foi por aí que Romero entrou no teatro. Eu acho que eu escrevi no fim de 87 e se encenou no começou de 88.
Folha - O sr. escreveu, então, depois do anúncio de que ia parar com a literatura.
Suassuna - Foi depois. Escrevi aquela carta em 81.
Folha - Voltando à questão da Bahia e de São Paulo, quando surgiu a crise do Econômico voltou-se muito ao conflito entre o Nordeste e o sul. E voltou subliminarmente a divisão do Brasil. Eu gostaria de saber a sua opinião. Por que o Brasil se mantém unido até hoje e se...
Suassuna - Veja bem, do ponto de vista político, eu acho que uma coisa fundamental foi o Império. José Bonifácio foi um político de uma habilidade fora do comum. E eu tenho a impressão de que, talvez comparando com o que acontecia na América de fala espanhola, ele viu que a saída seria fazer a independência através da Casa de Bragança. Para mim, foi a monarquia que salvou a unidade do Brasil. Quer dizer, como origem histórica da unidade. Tendo se mantido a unidade política, aí a língua portuguesa e a religião católica contribuíram para levar adiante.
Folha - O sr. imagina que seria preciso uma nova figura do gênero de José Bonifácio, para manter a unidade?
Suassuna - Eu não dou a menor importância aos que pregam o isolamento do Nordeste, do mesmo jeito que eu não dou a menor importância ao nordestino que pregue o isolamento de São Paulo. Acho um absurdo. O que tinha que se conseguir, a unidade, já foi conseguido. Tem cinco séculos o nascimento desta nação que fala português, e não adianta não. Esse pessoal que sustenta essas idéias, eles têm fôlego curto. A gente que ama o país, a gente tem o fôlego longo.

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