São Paulo, quinta-feira, 2 de novembro de 1995
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'Salve o Cinema' questiona limite da arte

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O que vemos, no início de "Salve o Cinema", é um documentário: um cineasta põe anúncio procurando candidatos a atores; centenas de pessoas se apresentam para tentar a chance de virar estrela.
Mas, já aqui, um ligeiro mal-estar se instaura: quem pôs o anúncio e quem filma a multidão é a mesma pessoa: Mohsen Makhmalbaf. Ele prepara o fato (a vinda das pessoas) e a registra. Ou seja, elabora uma ficção e a filma como documentário.
Passamos em seguida ao teatro, o local onde se realizam os testes. Ali, há uma câmera, uma grande mesa onde está sentado o diretor e o outro lado, onde ficam os candidatos. Makhmalbaf pergunta aos candidatos por que pretendem ser atores. Avisa que é mais fácil ser "humano" do que que ser artista. Em seguida, ordena-lhes que chorem.
A encenação prossegue. Pois sabemos que há, nessa história, dois Makhmalbaf: o que dirige a câmera e o ator (que dirige os candidatos).
O que no princípio se apresentava como um documentário, agora mostra sua verdadeira face: é uma ficção pura e simples, em que o papel de cada ator consiste, justamente, em representar um candidato a ator. Os atores sabem que estão fazendo esses papéis?
Pouco importa para o diretor que, no caso, é mesmo um déspota. O que conta, para Makhmalbaf, é que todos representamos um papel e ao encenar seu filme ele nos diz isso claramente: é como se nenhum homem fosse ele mesmo, na medida em que vivemos no interior de um jogo de espelhos, em que nos é exigido representar, sempre, um papel.
Mas, como sabemos que estas pessoas não são de fato artistas, estamos suspensos nessa ambiguidade: é ao representar um papel que somos nós mesmos, criaturas de cultura, determinadas por um jogo de expectativas que vai além de cada um de nós.
Por isso, não é incompreensível que Makhmalbaf reivindique, numa entrevista, sua condição esquizofrênica: quem está diante da câmera é um homem; quem está atrás é outro. O primeiro, segundo ele, é um democrata. O segundo, cruel, despótico em suas infindáveis exigências: o poder, enfim.
É claro que, diante de "Salve o Cinema", inúmeras interpretações são possíveis, inclusive a do próprio diretor, para quem o essencial é a "realidade" que o jogo de espelhos pode mostrar à população (nesse sentido, o autoritarismo seria algo incrustado na própria cultura iraniana).
É possível aceitar também outras interpretações, como, por exemplo, a de que o filme estaria dizendo que o paraíso (representado pelo cinema) não existe.
Mas todas essas interpretações deixam brechas: pode ser, mas também pode não ser. Ora, aí mesmo está o sentido deste filme. Entre o documentário e a ficção, o falso e o verdadeiro é que se encontra a natureza do cinema.
O filme pode captar imagens da realidade. Ainda assim, ele não é a realidade, mas sua representação.
É ao tocar nessa fragilidade do cinema -sua ambiguidade, sua capacidade de tudo dizer e desdizer num simples olhar- que Makhmalbaf toca, também sua natureza. Uma fragilidade e uma natureza iguais, por sinal, às do homem. Aí estão sua beleza e sua verdade. Cruéis como o diretor. Então "salam", cinema.

Filme: Salve o Cinema
Produção: Irã, 1995
Direção: Mohsen Makhmalbaf
Elenco: Azadeh Zangeneh, Maryam Keytahn, Feyzolah Ghashghai
Onde: hoje, às 19h30, no Grande Auditório do Masp; legendas em português

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