São Paulo, quinta-feira, 2 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cinema europeu dá sinais de vitalidade

WALTER SALLES JR.

Três filmes franceses e um italiano rejeitam o academicismo e resgatam a contundência e a inquietação
WALTER SALLES
JR. Especial para a Folha
Cinema de urgência e confrontação. Três filmes de jovens diretores franceses que fazem parte da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo -"O Ódio", de Mathieu Kassovitz, "Bye Bye", de Karim Didri, e "Raï, de Thomas Gilou- injetam uma baforada de ar fresco no cinema mais acadêmico do mundo, literalmente "à bout de souffle".
Personagens até ontem à margem do cinema francês tomam a tela de assalto. Excluídos que nunca tiveram voz inventam uma nova língua. Nestes três filmes diversos, uma mesma geração de deserdados vive o desenraizamento como estado permanente. Filhos de imigrantes, não são mais árabes ou africanos, não conseguem ser franceses, têm passaporte e carteira de identidade mas não têm país.
Em "O Ódio" três amigos que moram no mesmo subúrbio -um filho de imigrante árabe, um africano e um judeu- vivem em estado de tensão as 24 horas seguintes a um confronto sangrento com a polícia. Andam o tempo inteiro mas o movimento não leva mais a lugar nenhum. Da mesma forma, a violência que permeia o filme não é mais dirigida contra alguém mas é difusa, violência entre amigos, violência entre policiais, entre filhos de imigrantes e policiais.
O último refúgio é o "verlan" (jogo do inverso), o dialeto gritado como metralhadora giratória, declinação do francês que só os jovens iniciados do subúrbio conseguem entender. Em "O Ódio", é a velocidade do verbo que dita o ritmo da ação. Neste filme marcado pela ausência da figura paterna, a língua é definitivamente a única pátria possível.
"Bye Bye", talvez o mais belo e generoso dos três filmes, conta a história de dois jovens irmãos, filhos de imigrantes tunisianos, que, após um incidente em Paris, buscam refúgio na casa de familiares em Marselha. O filme, servido por diálogos precisos, um amor incomum pelos personagens e por um fotógrafo com uma rara sensibilidade pelo quadro (John Mathieson, que vem do cinema experimental inglês), faz de Didri um dos talentos mais promissores do cinema europeu. Uma sensação de deslocamento invade o filme como um todo. Os dois personagens, Ismail e Mouloud, não se sentem mais em casa em lugar nenhum. Não conseguem mais voltar à Tunísia, nem tampouco sobreviver sobreviver num país ameaçado pelo Front National, os neofascistas franceses. Essa dupla impossibilidade, partir ou ficar, é evidenciada pelo chamamento constante do mar, pelo navio que Ismail sempre vê mas nunca acaba pegando.
"Raï" também evidencia as contradições entre a cultura árabe e as regras monolíticas da vida francesa. Durante uma festa, um jovem filho de imigrante sobe num telhado e começa a atirar a esmo. A polícia chega abrindo fogo. O ato de loucura individual se transforma em conflito coletivo. Novamente, busca de identidade e incapacidade de encontrar um lugar no mundo alimentam um filme ritmado pela língua e pelo rap dos subúrbios.
"O Ódio", "Bye Bye" e "Rai¨" são filmes corajosos que, paradoxalmente, falam do vazio. De falta de perspectiva de uma geração, da incapacidade de pertencer. Dos filhos daqueles imigrantes que trabalharam nas indústrias européias como mão de obra barata e que, agora, são cuspidos de volta. Falam do que está acontecendo e do que ainda vai acontecer. Numa entrevista só publicada no jornal "Le Monde" depois de ter sido friamente abatido pela polícia, Khaled Kalkal, jovem árabe acusado de ter colocado as bombas terroristas nos trens de Lyon e de Paris, dizia: "Gostaria de voltar para meu país. Hoje não sou mais árabe, não sou francês, não sou mais nada. Não sei o que eu faço". Exatamente o mal-estar prenunciado por Kassovitz, Didri e Gilou. Cinema de antecipação.
"Lamerica"
"Lamerica", filme italiano que ganhou merecidamente o prêmio "Felix" de melhor filme europeu de 1994 e foi a sensação do último Festival de Nova York, completa o quadro. Dirigido por Gianni Amelio, cineasta de rara inteligência e sensibilidade, "Lamerica" tem a mesma contundência dos filmes franceses, mas trilha o caminho inverso.
Dois industriais italianos tentam dar um golpe na Albânia. O primeiro volta à Itália, enquanto o mais jovem fica para montar uma fábrica de sapatos que, na verdade, é apenas uma fachada. O caos político e as lutas intestinas pelo poder desmantelam o plano. Num "road movie" externamente original, o jovem italiano tenta desesperadamente voltar para sua terra. O processo de desconstrução conduzido por Amelio com mão de mestre faz com que o jovem yuppie italiano se transforme pouco a pouco num refugiado albanês. Enquanto nos filmes franceses os personagens estão trancados dentro de seu país, em "Lamerica" o personagem está trancado fora. Duas faces de uma mesma -e inquietante- moeda.

Texto Anterior: "A Rede" é coerente
Próximo Texto: 'Salve o Cinema' questiona limite da arte
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.