São Paulo, quinta-feira, 2 de novembro de 1995
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A charada do pessoal adequado ao serviço público

MARIO CESAR FLORES

A reforma administrativa em discussão no Congresso e alguns episódios recentes sobre funcionários de alto escalão oriundos do setor privado e sobre consultorias privadas trouxeram à baila o problema do pessoal adequado ao serviço público. A controvérsia, oportuna e compreensível, é complicada pela idéia da desprivatização do Estado, pelo resíduo ideológico do Estado-leviatã e pela reserva de mercado de trabalho.
Desprivatizar o Estado é meta correta, mas sua privatização tem a ver com os funcionários e consultores "de fora"? Pode ter, mas não apenas. Os deslizes que produzem benefícios privados à custa do interesse público têm sido praticados por funcionários "de fora" e "de dentro"; estes, via corrupção para atender interesses "de fora" ou extraindo do Estado privilégios amorais travestidos de direitos legais (é o caso do marajanato, que privatiza o público à sombra da ambiguidade permissiva da lei).
Aliás, radicalizada a questão da procedência, o que dizer de um Congresso de bancadas corporativas (rural, da saúde, da Suframa etc.), cujo poder é enorme no nosso estado de Direito? Desprivatizar é, portanto, mais um problema cultural e de revisão dos elos do Estado com interesses privados do que da procedência de quem lhe presta serviços.
Quanto ao resíduo ideológico do Estado-leviatã, é natural que os remanescentes de sua burocracia resistam nas últimas trincheiras da cultura coletivista e do nacionalismo exacerbado, com o apoio de intelectuais e jornalistas que compartilham as mesmas crenças; para eles, o Estado deveria ser tripulado apenas por servidores públicos supostamente fiéis aos ideais burocrático-coletivistas. Apesar da resistência, a lógica da época está reduzindo a influência desse resíduo, que já começa a afetar pouco o desempenho do Estado.
Agora a reserva de mercado, mais presente em Brasília onde ela se mescla com o poder e suas benesses. A questão é sensível no preenchimento dos cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS), que criou na capital uma "nomenklatura do cerrado" na medida em que cargos originalmente criados para cooptar gente "de fora" com habilitações especiais foram sendo ocupados por servidores nela residentes.
Resultam daí pelo menos dois problemas: a "dança das cadeiras" DAS nas mudanças de governo, quando os servidores trocam de cargo (como se capacitados para qualquer tarefa) em uma disputa "vale tudo" para evitar o tombo salarial e a interrupção na incorporação de gratificações; e, como a designação para cargo DAS depende da escolha dos chefes, sujeitos apenas às pressões do clientelismo, o servidor pode ser envolvido em um conflito entre submissão ao chefe e lealdade ao Estado -cujos interesses nem sempre coincidem.
Mudar isso exige medidas cujos alicerces dependem da reforma constitucional do Estado, a ser complementada pela revisão da lei do regime jurídico único -que põe no mesmo saco qualificações e responsabilidades distintas- e por planos de carreira.
Curiosamente, a reforma é resistida não apenas pelos que têm no clientelismo um suporte eleitoral importante, mas também por segmentos políticos que se consideram na vanguarda da evolução, mas não enfrentam o corporativismo público, seu aliado eleitoral por força do resíduo ideológico do Estado-leviatã e de seu complemento, a reserva de mercado (essa aliança tende a degenerar onde e quando aqueles segmentos assumem a responsabilidade do poder).
Dentre as medidas necessárias ressaltem-se duas complexas: respeitado o teto constitucional (sem as ambiguidades permissivas do marajanato), as remunerações dos graus das carreiras, não-desfiguradas por gratificações, devem se aproximar do mercado, ainda que não empatando porque os servidores usufruem vantagens compensatórias como aposentadoria e pensão integrais.
Essa medida dispensará o uso de gratificações para remunerar melhor algumas carreiras. Complementarmente, há que se ter algum respeito à hierarquia na escolha de titulares, admitindo-se que a ascensão nas carreiras ocorre por habilitação e mérito, prática que tornará mais difícil a opção pela clientela em detrimento do servidor antigo e capaz.
O exemplo militar é claro: um cargo de coronel não será dado a capitão, mesmo se filho do presidente, mas o coronel é coronel porque comprovou ser capaz de exercer os cargos de seu posto, que não lhe foi conferido pelo arbítrio dos chefes; ele deve lealdade, mas não submissão pelo receio de perder salário.
De qualquer forma será preciso manter uns tantos cargos DAS, ao menos nos níveis mais altos (remunerados pelo mercado, respeitado o teto constitucional), destinados a gente "de fora" habilitada para certas tarefas. Consultorias e funcionários "de fora" são necessários para oxigenar a burocracia com seus conhecimentos e experiências, cobrir deficiências que existirão sempre -porque é inviável a estrutura orgânica capacitada para tudo- e preencher alguns cargos efetivamente de confiança, hoje excessivos em prol do clientelismo.
Nem execração dos servidores cujas mazelas têm solução a partir da reforma do Estado (revisão de "direitos" prejudiciais ao interesse público, carreiras estruturadas na habilitação com ingresso e dispensa em função da atividade, harmonia nas remunerações dos três poderes, regulamentação do direito de greve etc.), nem xiitismo contra os "de fora", a serviço da reserva de mercado, resquício de ideologia superada ou em nome de uma equivocada desprivatização do Estado.
O equilíbrio esbarra em interesses e mitos, mas, na nossa história, "arrumação" do serviço público sem reação só quem fez foi Tomé de Souza.

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