São Paulo, quinta-feira, 2 de novembro de 1995
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O adesismo como bandeira

JAQUES WAGNER

Tendo sido base de um "Guia Genial dos Povos" e de um "Cavaleiro da Esperança", que a certa altura deste século representaram ditaduras tenebrosas e comprometeram seriamente a idéia do socialismo, o senador Roberto Freire se sente autorizado a dar lições sobre democracia, socialismo e messianismo com a leveza de um cisne supostamente capaz de singrar um mar de lama sem se manchar.
Isso pode não ser espantoso se considerarmos que estamos no Brasil, que a desfaçatez é um dos traços de caráter das elites do país e que esse traço de caráter tende a se acentuar quando se manifesta em figuras que originalmente não faziam parte das elites, mas foram apenas cooptadas por elas e, por isso, se sentem no dever de serem mais realistas que o rei.
Refiro-me ao artigo publicado neste espaço, na edição de 26 de outubro, em que o senador Roberto Freire (PPS-PE) faz uma leitura muito particular de uma pesquisa feita pela Folha para se "intrigar com a sanha autoritária que ronda os quartéis da esquerda".
O zelo democrático de Roberto Freire foi despertado por uma pesquisa que afirma que, entre os simpatizantes do PDT (19%) e PT (16%), há quem tenha preferência por ditaduras e que as taxas de preferência pela democracia no PSDB (63%) e no PPB (61%) são altas. A pesquisa nada disse sobre o posicionamento dos simpatizantes do PPS, talvez porque o Datafolha não utilize microscópio-social-eletrônico. Em todo caso, nada prova que um percentual de simpatizantes do PPS não tenha pendores ditatoriais.
A pesquisa é vaga e -a Folha deixou claro- é entre simpatizantes. Não reflete portanto o pensamento nem da base organizada, nem das direções partidárias. Mas foi suficiente para estimular Roberto Freire a lançar insinuações malévolas sobre "quartéis" da esquerda e messianismos de determinados líderes.
Essas insinuações são repulsivas, pois por meio delas ele procura negar a impecável trajetória democrática de um partido que nasceu sob o signo da negação das ditaduras que infelicitavam os povos do Leste Europeu em nome do socialismo, com o apoio do neodemocrata Roberto Freire.
O senador mostra-se também muito atento ao que chama de traços messiânicos de certas lideranças de esquerda. O bom senso sugere que, para fazer face ao messianismo, seria necessário um empenho no sentido da organização da sociedade em partidos democráticos e em outras instituições.
Aí então se colocaria a questão de saber quem tem contribuído mais para a organização da sociedade. Certamente não tem sido o PPS.
Roberto Freire encontrou sinais de golpismo no "fora Collor". Cada um faz a leitura que quer dos fatos do passado. Mas o que a história já consagrou como a verdade é que aquele foi um movimento amplo e democrático que muito contribuiu para o avanço da consciência crítica dos brasileiros. Aliás, a luta pelo impeachment foi um movimento tão amplo que teve a capacidade de incorporar até Roberto Freire, obrigando-o a tomar uma posição.
Finalmente cabe registrar que o futuro continua pertencendo a Roberto Freire, dono absoluto dos amanhãs que cantam. Ele decretou que não existem soluções fora do governo FHC e resolveu banir o PT e o PDT de nosso futuro democrático, onde se exige clareza de posições. Essa feliz perspectiva talvez nos permitirá saber se o senador é do governo ou da oposição, mas infelizmente isso não alterará a correlação de forças vigentes na sociedade.
O PT continuará no seu caminho, consciente de que o colonialismo ideológico, que aliena liberais e stalinistas, é de pouca utilidade para quem quer realizar transformações sociais e de que a democracia não deve ser reduzida a mera retórica. A democracia até aqui arrancada a duras penas de uma elite ferozmente autoritária só pode ser defendida através de seu exercício cotidiano.
Não precisamos pedir licença a ninguém, nem a Roberto Freire, para fazer oposição a um governo que executa um programa que agride frontalmente os interesses da nação e que amplia a cada momento as multidões de excluídos.
Esse é um exercício de democracia e é compreensível que stalinistas, que sempre oscilaram entre o golpismo autoritário e o adesismo fisiológico, tenham dificuldades para respirar o hálito selvagem da liberdade.

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