São Paulo, quinta-feira, 2 de novembro de 1995
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Inferno das intenções

OTAVIO FRIAS FILHO

A mentalidade correta vai recobrindo todas as possibilidades que se possam imaginar. Um grupo de patetas lançou, recentemente, uma versão "adequada" da Bíblia em que palavras como "Pai" ou "escravos" são banidas por serem consideradas discriminatórias, como se a função das palavras não fosse exatamente essa, a de discriminar.
Um garoto brasileiro de 17 anos acaba de responder a processo, nos Estados Unidos, acusado de acariciar o seio de uma menina de 14. Um acordo permitiu transferi-lo de Estado. São casos extremos, é verdade; a regressão puritana ainda está basicamente restrita ao mundo anglo-americano, por razões históricas que lhe são específicas etc.
Nada disso tranquiliza, entretanto, seja porque a cultura americana é o centro de gravidade de onde tudo provém e para onde tudo converge, seja porque a nossa tradição é de importadores de ideologias, tanto mais prestigiosas quanto mais remotamente ligadas aos nossos problemas, àquilo que somos.
De modo que nem o nosso atraso cultural, nem nossa flexibilidade de costumes são obstáculos seguros à mentalidade correta. Ela já está entre nós, aliás, e por que opor-se a ela? Somos todos contra preconceitos, a favor da igualdade entre etnias e sexos, amamos a natureza e respeitamos o outro por sabermos, como Rousseau, que "nosso verdadeiro eu não está inteiro em nós".
O que essa mentalidade se propõe a combater são os impulsos de agressão contra o outro, traduzidos em preconceito, e contra nós mesmos, quando maltratamos o corpo ao privá-lo de exercícios e vida saudável. Pureza, no sentido físico tanto quanto moral, é a idéia básica, com suas ressonâncias religiosas e clínicas, o que não deixa de ser uma tentativa, talvez a última, de reconciliar Deus com a ciência.
Ocorre que a agressividade tem raízes nas profundezas da mente, em algum lugar entre o biológico e o psíquico. Os esforços politicamente corretos têm, assim, algo daqueles experimentos destinados a forjar lobos vegetarianos, em que se obrigavam as cobaias a se absterem de carne. Simplesmente negada, varrida para baixo do tapete, a agressividade não desaparece.
Pelo contrário, ela redobra. Não é por acaso que a intolerância racial, bem como a guerra dos sexos, aumentam nos EUA conforme a mentalidade correta se torna ideologia oficial: não se trata de paradoxo, mas de pontas separadas de um mesmo iceberg. Quando se recusa à agressividade qualquer forma de expressão ela recrudesce; as desigualdades a serem erradicadas se eternizam no ressentimento mútuo.
A título de exemplo, imagine uma expressão X, insultuosa para determinado grupo. O preconceito dos que empregam o termo X só pode ser derrotado pelas próprias vítimas da expressão; somente quando elas a ouvirem com indiferença é que a discriminação estará extinta. Proibir a palavra X, bani-la de dicionários e cartilhas obviamente tem o efeito inverso de satanizar a expressão, aumentando o seu poder destrutivo.
O que está em jogo é o antigo conflito entre liberdade e igualdade, que não tem solução; o melhor que se pode atingir é um frágil equilíbrio entre termos contraditórios. A idéia de uma sociedade onde virtude pública e pessoal coincidam, como em Esparta, é monstruosa. Mas nem bem constatamos que o totalitarismo social é um inferno e já mergulhamos de cabeça na sua versão moral.

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