São Paulo, sábado, 4 de novembro de 1995
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Governo caloteiro não tem moral para cobrar seus créditos

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma das vozes públicas mais frequentes na comunicação jornalística, do rádio e da televisão, é a dos administradores prometendo diligências fiscais em busca de arrecadarem mais tributos, contribuições, taxas, impostos provisórios e tudo mais o que a burocracia consegue inventar.
Estranho é, porém, que os mesmos governos aos quais esses cavalheiros (e damas) pertencem caloteiam seus próprios credores. Pior: ficam irritados e proferem ameaças de devassas quando os credores insistem em cobrar o que lhes é devido, por vezes relacionado com sua própria sobrevivência.
Quando a Constituição afirma que há igualdade de todos perante a lei, quer afirmar o equilíbrio jurídico, que compensa desigualdades, buscando satisfazer o interesse comum. Ora, em matéria de créditos e débitos, a desigualdade entre governos que caloteiam, mas são perseguidores fiscais, merece meditação.
A linha do haver e do dever há de ser de duas mãos. Se é possível que um chefe do Executivo deixe vazios, depois de quatro anos de mandato, os cofres públicos, confiados a seus cuidados, cabe a meditação do jurista para produzir meios de impedir o absurdo, ou, ao menos, de criar mecanismos tão eficazes de punição que ninguém se sinta animado a tal tipo de comportamento.
A perspectiva histórica da meditação do político parece, contudo, levar a outro caminho, no qual se vê uma certa esperteza. Nesta, a vítima de hoje cogita de como também poderá deixar os cofres vazios para seu sucessor. Posso até parecer injusto, mas é difícil imaginar diferentemente, quando se vê a mesma conversa repetir-se ano após ano, em uma cantilena da qual o povo está cansado.
Para o leitor ter uma idéia do desequilíbrio entre os direitos e deveres dos credores e devedores governamentais basta dizer que as dívidas recíprocas sempre foram, tradicionalmente, não compensáveis.
O devedor de tributos que fosse credor de dinheiros públicos não podia abater de seu crédito o que devesse, ou mesmo cessar de pagá-los, como um mecanismo de quitação recíproca.
Em tempos mais recentes tem havido alguma evolução para contribuições da mesma espécie, mas, como regra, a compensação não vale.
"Macaco, olha o teu rabo", diziam os antigos, quando um faltoso pretendia haver bom comportamento dos outros, que, entretanto, se recusava a adotar. A frase cabe para governos caloteiros que querem receber créditos, mas não pagam seus débitos.
Anoto mais que nesse campo a imprensa me desperta uma certa curiosidade. Vai fácil na conversa dos governantes. Acredita (corretamente, aliás) nas queixas dos superfaturamentos -muito acima dos preços de mercado- sem fazer a avaliação crítica correspondente -no que erra- dos efeitos destruidores dos atrasos, dos "canos" dos descumprimentos da palavra, para não falar do desrespeito à lei dos governos devedores.
Conto ao leitor, ao fim, qual a inspiração para este comentário. Foi o ministro Reinhold Stephanes, da Previdência Social, que resolveu pagar todos os débitos de sua pasta relativos a sentenças judiciais das quais não cabe qualquer recurso.
Todos sabemos que cumprir a decisão judicial é dever elementar. Todavia, surgir um governante que cumpra esse dever é tão, mas tão raro, que até resolvi aproveitar o tema. Stephanes, cumprindo a obrigação de pagar, terá legitimidade para cobrar o que lhe for devido.

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