São Paulo, sábado, 4 de novembro de 1995
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À margem da história

RUBENS RICUPERO

Ao dar esse título a um dos seus livros, Euclides da Cunha certamente não pensava na marginalização que hoje ameaça muitos povos e até um continente inteiro.
A expressão se ajusta, porém, como luva a uma situação em que uma tendência histórica -a globalização da economia- pode empurrar países de milhões de habitantes a uma zona de exclusão da história do futuro.
Pode parecer contraditório falar em globalização e exclusão, pois a primeira dessas forças deveria, em princípio, completar o processo de integração das diversas famílias de civilizações, iniciado pelos descobrimentos e prosseguido pela expansão ocidental.
A globalização seria, assim, o último estágio de um movimento que derrubou barreiras -a última sendo o Muro de Berlim- e obrigou povos até então segregados não só a se reconhecerem mutuamente na sua fundamental unidade humana, mas a viverem em interdependência.
O fenômeno é sobretudo econômico e se manifesta de muitas formas. Nas finanças, os fluxos de capital, em particular os de curto prazo e as operações de câmbio, adquiriram volume, velocidade e volatilidade tais que escapam aos controles governamentais e envolvem o globo como rede de malhas finas.
Na produção, as transnacionais distribuem os distintos elos da cadeia produtiva por localizações geográficas diferentes, segundo a lógica dos custos, eliminando a noção de "produto nacional.
O comércio internacional cresce consistentemente a taxas superiores em dois, três ou quatro pontos percentuais ao aumento do produto, tornando a economia mundial cada vez mais interdependente.
Tudo isso se faz graças aos avanços tecnológicos em telecomunicações, transportes e computadores. Marx, que reconhecia no imperialismo inglês na Índia o mérito de abater as barreiras da fragmentação feudal, veria no momento atual a culminação da vocação do capitalismo para unificar o espaço econômico em dimensão planetária. Onde, portanto, o mal de um movimento histórico que tende a unificar o gênero humano e aumentar sua eficiência econômica?
O problema está em que as forças da globalização e da liberalização se acompanham, em geral, de uma crescente exclusão interna e externa. O fenômeno é, de certa forma, consequência da exacerbação do elemento competitivo, evidente no lugar central que a noção de "competitividade veio a ocupar no debate econômico contemporâneo.
A competição num jogo de soma zero produz, como dizem os americanos, mestres nessa arte, poucos vencedores e uma legião de perdedores.
Numa cultura que faça da competitividade e da agressividade valores supremos, a eficiência seguramente se maximiza, mas é difícil evitar o aparecimento de um exército de "vencidos da vida.
Estes são, internamente, desempregados crônicos e subempregados, cujo número não cessou de aumentar, em termos estruturais, nas economias avançadas da Europa Ocidental e agora do Japão.
São também os marginalizados das favelas e periferias das monstruosas megalópoles latino-americanas ou as famílias desestruturadas de minorias raciais dos guetos dos Estados Unidos.
No plano externo, são as multidões de refugiados econômicos da África do Norte ou do Leste Europeu que perambulam pelas ruas de Paris, Milão e Berlim, o exército de hispano-americanos que se infiltra incansavelmente pelas fronteiras do Texas e da Califórnia, os países dependentes de produtos primários, sobretudo africanos, integrados pelo colonialismo na economia mundial do século 19 e agora ameaçados de ser dela expulsos pela globalização.
É impossível não evocar, a esse propósito, a explicação que dava Toynbee sobre a ruína de civilizações e impérios como o romano, pela conjunção do proletariado interno e externo, a plebe e os bárbaros, os desempregados e os marginalizados.
Nos últimos cem anos, o Ocidente exorcizou esse perigo mediante uma política que combinou a emigração maciça de excedentes populacionais para o Novo Mundo com a legislação social e as instituições do "welfare state, que ajudaram a moderar ou corrigir os rigores e excessos da competição.
Essas instituições e leis são precisamente as mesmas que se encontram hoje sob violenta ofensiva dos que as consideram entraves à competitividade e fonte de perpetuação da pobreza.
Será possível ou imaginável abandoná-las no que contêm de válido e entregar-se por completo aos azares da "mão invisível do mercado?
Ou será mais sábio complementar a agenda da globalização e da liberalização com uma outra agenda, a dos mecanismos para reduzir ou equilibrar as disparidades domésticas e internacionais acentuadas pela intensificação da competição econômica?
A busca dessa síntese de equilíbrio entre globalização e redistribuição, entre crescimento e equidade, dominará, nesta passagem de século, o debate interno e o internacional.
Longe de termos assistido ao "fim da história, com o fim da disputa ideológica entre livre mercado e comunismo, seremos testemunhas de novos embates enquanto não se conseguir encaminhar solução para os flagelos do desemprego e da marginalização.

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