São Paulo, sábado, 4 de novembro de 1995
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País chuta Nossa Senhora e algema Diolinda

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

No dia 12 de outubro passado o "bispo" Von Helder deu pontapés e socos na estatueta de Nossa Senhora; no dia 30 do mesmo mês o juiz de Pirapozinho (600 km a Oeste de São Paulo) fez algemar Diolinda Alves de Souza, mãe de um menininho de dois anos e mulher do líder dos sem-terra José Rainha Jr.
Os dois flagrantes brutais, o de Von Helder insolente chutando a estátua de madeira e a da mãe fechando os braços ao filho para ser algemada, vão ficar para sempre na minha lembrança, se dissolvendo, como imagens na tela da televisão, uma na outra.
São o retrato de um Brasil que, insatisfeito consigo mesmo, começou uma guerra contra a mãe. Em geral. Não somos mais filhos da mãe. De mãe nenhuma, divina ou carnal. Cansado de tentar criar um país direito, o Brasil parece que quer parar. Para que mais gente? Outrora tínhamos, em maio, o mês de Maria. Agora temos, em outubro, o mês da "Mãe Nenhuma".
Diolinda teve que tirar dos braços João Paulo, o filho de 2 anos, para ser algemada, como um pistoleiro qualquer. Isto porque ela cometeu o crime de ser a mulher de José Rainha Jr., um líder que luta no Brasil para acabar com as capitanias hereditárias que ainda dividem nosso solo.
Pode ser que, quando este artigo chegar ao leitor, Diolinda já esteja solta e o governo -como eu espero- já tenha lhe pedido desculpas pela boçalidade. Tal como, com seu jeito grosseirão, o "bispo" da Igreja Universal do Reino de Deus procura desculpar seu gesto de quem acha que apenas chutou uma boneca de piche.
O "bispo" e o governo, no caso, parecem irmãos. Von Helder alega que o fetiche que espancou passa por imagem de mãe do Deus porque desde o descobrimento padres católicos garantem que qualquer santo se encarna em qualquer imagem salpicada de água benta.
O governo alegará que a reforma agrária brasileira é impossível porque desde o descobrimento as glebas pertencem aos amigos do rei. As duas superstições se parecem, pois sempre confundimos corte celeste com a corte que nos governa no momento.
Reparem, nas fotos de jornal, na televisão, como os engravatados da igreja Universal e os do governo federal se assemelham. O Brasil continua com suas duas religiões, a católica, hoje seriamente ameaçada pelo vigor e a fúria capitalista das seitas evangélicas, e a do controle da propriedade do solo, que tem seus defensores sempre atentos e agressivos. Agora, sobretudo, os aglutina na sólida irmandade política do Congresso, onde formam bancada corporativa, fascista.
Igreja e governo apoiado no latifúndio continuam, mas começam a tomar as perigosas liberdades que tomam sempre aqueles que o excesso de poder acaba por fatigar e embotar. Tanto assim que não só Nossa Senhora Aparecida pode ser chutada e esbofeteada na televisão, como, dias depois, uma jovem mãe, honesta, que botou o nome do papa no filho, é caçada no recinto de seu lar devido às atividades políticas do marido.
São, para nós, iniciativas de uma indiscutível "novidade". Nossa Senhora é tratada com o desrespeito com que só era tratada antes a chamada mulher de malandro: a tapas e chutes. E uma mulher direita é presa e algemada em sua casa como antigamente só se fazia com meliantes considerados de alta periculosidade.
Não parece coisa de Brasil. Estaremos cansados do famoso jeitinho? Estaremos meio enfadados com 500 anos de hipocrisia?
Aguardemos. O mais provável é que, durante dias e dias, fotos de "bispos" engravatados e governantes idem se sucedam nos jornais e na televisão explicando e justificando o que aconteceu durante o outubro antimãe. E as fotos nos lembrarão antigas gravuras em que padres de sotaina negra e fidalgos com gola de renda começavam a pôr em risco o futuro deste país que dá sinais de estar cansando de si mesmo.
Giorgos Seféris
Em 1963, o Prêmio Nobel de Literatura foi pela primeira vez concedido a um escritor de língua grega, o poeta Giorgos Seféris. À primeira vista fica-se surpreendido. O brilho cultural da Grécia antiga é tão forte e permanente, que se imagina que tenha havido um mínimo de continuidade. Não houve.
Andei mergulhado em Seféris graças à excelente tradução de sua poesia por José Paulo Paes. Paes não só traduziu Seféris do original como escreveu um ensaio a seu respeito e a respeito de sua obra para a editora Nova Alexandria.
Um livro precioso para nós, brasileiros, que não temos história. A Grécia tem história demais e um grego moderno (Seféris viveu de 1900 a 1971) sofre pela razão contrária à nossa. Ele sabe que jamais a Grécia voltará a ser o que foi, a grande Grécia de outrora, que hoje parece uma bagunça latino-americana. E é bela a tristeza de Seféris quando pensa nisso. Ouçam estes versos em que, paradoxalmente, a dor que o poeta sente porque não há mais Grécia faz a Grécia renascer um pouco para o leitor:
"Para onde quer que eu viaje, a Grécia me dói. / Apitam os navios agora que anoitece no Pireu / todos apitam todos mas não se move cabrestante / algum corrente alguma que úmida cintile à luz agonizante / o capitão está ali de pedra em meio aos astros. / Para onde quer que eu viaje a Grécia me dói."

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