São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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O olhar diverso do oriente

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"Lúcia sempre foi discreta sobre si mesma, mas certa vez explicou-me, de maneira simples, o que pretendia escrever. (...) Ainda não conheci ninguém que tenha tido uma idéia tão original e tão estimulante como esta."
A afirmação é de Nagisa Oshima e faz parte do prefácio escrito pelo cineasta em 93 para "Em Torno da Nouvelle Vague Japonesa", lançado naquele ano pela professora de história e teoria do cinema da Unicamp Lúcia Nagib.
Oshima, 63, referia-se, ali, não ao livro que prefaciava, mas a um outro trabalho, então em preparação, que se materializou neste ano e está sendo lançado agora: "Nascido das Cinzas - Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima".
Neste seu novo livro, com efeito, Nagib, 39, disseca a obra do cineasta japonês sob uma ótica bastante peculiar. Para ela, independentemente da sequência cronológica, há na filmografia de Oshima um "personagem básico" que a atravessa, em três momentos de sua vida: infância, juventude e maturidade.
Esse personagem típico veste diferentes peles, idades ou nomes, dependendo do filme, mas é sempre um "ser global idealizado" que se nega a abrir mão de sua subjetividade face à sociedade japonesa tradicionalmente coletivista. Ao longo de sua existência, ele se expressa de várias formas: trapaças, criminalidade, violência, perversão sexual.
Oshima se desgarra do "humanismo fundado no princípio da autoridade" de mestres como Ozu, Kurosawa e Mizoguchi. Aberto a um diálogo crítico com o "ocidente" -Buñuel, Godard, Antonioni e, por que não, uma pitada tardia de Hollywood-, ele subverte as tradições de seu país, revê sua história, mas para resgatá-lo, compondo, no conjunto e com distanciamento, uma espécie de "hino de amo"r ao indivíduo japonês.
Nagib demonstra sua hipótese passo a passo, filme a filme, de "Cidade do Amor e da Esperança" (1959) a "Furyo" (1982), passando pelo "escandaloso "O Império dos Sentidos" (1976), considerado por muitos o melhor filme erótico de todos os tempos.
Para tanto, usa, com sensibilidade, conceitos históricos, políticos e psicanalíticos -procedimento indispensável, no caso, dada a complexidade e o simbolismo sempre presentes em Oshima.
Em "O Garoto" (1969), por exemplo, a afirmação da individualidade expõe-se na relação entre o personagem principal e seu boné, objeto de grande força simbólica na tradição japonesa; ou ainda, tecnicamente, no contraponto operado pela câmera entre os pés e a cabeça, funcionando também, afirma Nagib, como "eco estético" do jogo entre vida e morte.
Em "Conto Cruel da Juventude" (1960), a câmera improvisa, perde o foco, tem dificuldade para acompanhar os personagens. Não se trata de uma ousadia formal gratuita, mas sim da expressão instrumental do desejo, à la Brecht, de romper o ilusionismo, escancarar a dor, questionar o aprisionamento de toda uma sociedade.
Os exemplos usados por Nagib são inúmeros, inclusive nos apêndices, compostos por textos não-inéditos da autora, entrevistas com Oshima e colegas, além da bibliografia e filmografia detalhadas.
Cabe ressaltar que a linguagem utilizada é clara e didática, facilitando a compreensão dos focos interpretativos da autora mesmo para leigos no assunto, como este resenhista. Para citar um caso: abordando "Furyo", Nagib chega a ilustrar o capítulo com partituras musicais, a fim de realçar nuanças simbólicas da trilha sonora. Pena que "Nascido das Cinzas" não exista também em CD-ROM.

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