São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Um detetive em busca de diversão

SÉRGIO SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A certa altura de "Os Crimes do Olho-de-Boi", o misto de detetive particular e empresário de artistas da noite, Adão Flores, diz a sua colaboradora Bianca, dona de uma boate:
"- Obrigado, querida. Sou o único detetive brasileiro famoso. Duvidar de mim é até antipatriótico.
Talvez, mas eu e o próprio autor, como se vê acima, duvidamos. Não porque uma trama em que cinco milionários são assassinados no espaço de um ano, todos com sobrinhos-herdeiros únicos, que encobrem, nos bastidores, um clube de filatelistas, seja pouco convincente.
O mistério e a fantasia, além do humor, é óbvio, fazem parte da tradição de um gênero que joga com clichês e cujo charme vem mais do estilo de seus praticantes que de qualquer verossimilhança.
Marcos Rey retira suas vítimas e respectivos herdeiros de um precioso baú de personagens típicos, que encerra, entre os ricaços, um poetastro e uma filantropa e, no meio dos sobrinhos, um pianista decadente e uma tenista. E, embora seja um tanto reiterativo nas investigações, Rey tem o tal charme, enquanto narrador:
"A herdeira nadava em círculo, como era hábito em 'shows' aquáticos da Metro-Goldwin-Mayer, tipo 'Escola de Sereias'. Era um espetáculo de graça, bem viver e coração tranquilo. Quando não há problemas financeiros, as pessoas adquirem um equilíbrio admirável..."
Igual ao narrador, o detetive é convictamente antiquado:
"- Se a juventude ouvisse Lucho Gatica, esqueceria o maldito 'rock'".
Duvido de novo, mas tudo bem. E Adão Flores gosta também de certos clássicos, de Dizzy Gillespie e Billie Hollyday, e, na MPB, chega até à bossa nova. A minha dificuldade, como leitor, se deu, em alguns momentos, com o artificialismo nacional-popular de certas falas:
"- Falei mulher bonita -ele disse. - Tragam as fotos do último concurso de miss". Ou: "- Adão, confesse-me o que nunca disse a ninguém. Veja em mim um padre se facilitar... Você já possuiu essa fêmea maluca? Já penetrou essa mulata inzoneira? Já saciou toda sua libidinagem naquelas carnes indecentes?"
Talvez porque tenha havido uma certa intencionalidade do autor ao introduzir personagens, como a mulata acima, Diana Bandida, com as quais está familiarizado da noite paulistana, da sua cidade oculta, num romance que coloca nos créditos, embora para parodiar, sua linhagem inglesa, de Conan Doyle, passando pela maestria norte-americana de um Raymond Chandler. (Flores acorda tarde e enxuga como o Marlowe do segundo.)
Certo que, na literatura, principalmente a policial, na qual tudo é uísque meio falsificado, "pulp fiction", não existe diálogo verdadeiramente realista. É técnica, estilização, que marca os personagens e faz a história andar, laconicamente na escola norte-americana. Mas muitas falas de Flores soam deslocadas e prolixas, como "- ...este obstáculo industrial no baixo ventre...", para dizer "calcinha", ou quase como justificativas:
"- Parem por aqui- concordou Adão. - Anote, meu nome não é Chico Bóia, é Adão Flores, o detetive que não erra uma. Ou: "- E eu tenho cara de detetive?"
"A fria realidade sem a sofisticação de Raymond Chandler", explica o narrador.
Sem ironia (minha), acho que Rey está sendo modesto. Nomear, sem fazer alarde, uma boate de "Huis Clos" e adjetivar de "marinetista um edifício construído nos anos 20, o que é se não cifrada sofisticação, para o bom conhecedor? O melhor de Marcos Rey é ele mesmo, e batizar com o nome de "Rubem um bandido-transformista é ótima brincadeira, para não falar no "Clube dos Homicidas", lembrando ao leitor inveterado o "Clube dos Suicidas", de Robert Louis Stevenson, autor que até Borges admirava.
No meio dos citados, encontram-se ainda Proust, Poe, Balzac, se bem que o autor faça questão de frisar:
"- Entre Adão Flores e Balzac, só existe uma coisa em comum, a barriga".
A história se repete como farsa, o que o autor não pretende esconder, aliás escancara em chanchada explícita, por exemplo na briga de restaurante entre a cantora mulata e a governanta alemã do detetive (que lhe serve também de interlocutora, como Watson a Sherlock Holmes):
"... O mais condenável de tudo foi o destino bélico dado a frangos, perus e peixes, e umas cinquenta 'pizzas', num país tão marcado pela fome..".
Um erro de resenhista é criticar um livro pelo que o autor não pretendeu. Marcos Rey não quis mais do que se divertir e divertir, com esta história de detetive. E Adão Flores, no final, resolveu seu caso em grande estilo, com uma trilha sonora que mistura Wagner e rock'n roll, temas musicais certeiramente selecionados para os bandidos.
Romance policial já é por si convenção e pastiche literários, com louras misteriosas, detetives beberrões, vilões cerebrais. Mas resenhista é mesmo chato e, antipatrioticamente, acha que crítica e autocrítica fazem a coisa avançar. E este aqui se pergunta se, num país que é ele mesmo o caso de polícia, estaremos destinados, no gênero, ao pastiche do pastiche, ou, como nos filmes da Atlântida e outros, à chanchada?

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