São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Segredos que a infância esconde

GRAZIELA R.S. COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A infância não é simplesmente um tempo perdido, que as pessoas tentam proustianamente redescobrir sobre os divãs dos psicanalistas. Para a teoria freudiana, a infância -ou melhor o infantil- é parte estruturante de cada ato psíquico -como mostra o psicanalista Bernardo Tanis em "Memória e Temporalidade - Sobre o Infantil em Psicanálise."
A partir de uma perspectiva histórica, o livro recoloca o infantil como categoria constituinte do psiquismo, bem como da teoria psicanalítica. Sob o signo da reconstrução, o autor promove um intercâmbio entre passado e presente, imprimindo em sua narrativa o ritmo atemporal do inconsciente. A obra freudiana é reatualizada por meio de relatos clínicos e releituras de autores contemporâneos.
No princípio de sua elaboração teórica, Freud dá ao evento traumático infantil -sedução da criança por um adulto- papel determinante na etiologia das neuroses. A noção de trauma, em seu apagamento da memória consciente e sua posterior reatualização no sintoma, aponta para um modelo amnésico de memória, em que há a possibilidade de evocação de um passado realmente vivido.
Com o abandono da teoria da sedução, Freud reconhece a força do imaginário presente no evento traumático, elegendo a fantasia como elemento de distorção de um desejo infantil jamais revelado. Fantasia e desejo infantil passam a ser elementos constituintes de uma outra realidade -a realidade psíquica, objeto de investigação da psicanálise. Esta realidade -o inconsciente- obedece a uma temporalidade não reversível, sendo regida por um registro mnêmico marcado pela repetição.
Fundado a partir da negação, o inconsciente é uma construção erguida em torno de uma tragédia infantil: o parricídio e o incesto. Fantasia fundamental e universal, a lenda de Édipo traz a marca de um desejo que, nunca satisfeito, teima em se reatualizar. Essa reatualização obedece a leis temporais diversas da concepção cronológica e transforma a memória evocativa em apelo à simbolização -via de acesso da clínica.
Diferenciando a infância da concretude material do desenvolvimento humano e elevando-a a conceito psicanalítico central -o infantil-, em torno de que fantasia e desejo se constituem, Tanis explora a dimensão do "sujeito histórico" na psicanálise, reacendendo a discussão sobre a dialética realidade histórica x verdade psíquica. Polêmica sempre presente quando se percorre o caminho sinuoso do desejo infantil em sua distorção mnêmica-temporal.
À luz de releituras e de casos clínicos, o texto segue dois eixos: o regressivo -ao partir da clínica por meio da atualização do desejo nas formações do inconsciente- e o progressivo -presente na construção metapsicológica realizada por Freud e re-significada pela psicanálise contemporânea.
Para o autor, a possibilidade de historização do sujeito reside na análise, que é vista como re-construção entre-dois (analista e analisando), na qual há uma acoplagem entre os dois tempos, o cronológico e o do inconsciente. É neste entrecruzamento que reside a possibilidade de o infantil se constituir como memória, em detrimento da mera recuperação de lembranças.
Dessa maneira, a análise torna-se um encontro entre historiadores, que, animados pela transferência e pelo modelo metapsicológico, possibilitam a reconstrução do infantil por meio da criação de uma terceira história. Escrita a quatro mãos, esta abre a possibilidade de re-significação, num movimento transformador, no qual "o novo pode advir".
Assim, Tanis promove o encontro da metapsicologia com a clínica, elegendo a primeira como o terceiro na relação analítica. E, ao retomar a idéia de que toda teoria é uma construção, o livro faz pensar ainda sobre a história mesma da psicanálise, em que "há uma coincidência entre o modo de fazer história e o lugar concedido à história na estruturação do psiquismo e no processo analítico".

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