São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Reflexões sobre o inconsciente literário

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chama a atenção que dois livros abordando a relação entre literatura e psicanálise sejam lançados simultaneamente. São eles "Confluências - Crítica Literária e Psicanálise", de Cleusa Rios P. Passos, e "Do Poder da Palavra - Ensaios de Literatura e Psicanálise", de Adélia Bezerra de Meneses. As duas autoras estão ligadas ao trabalho na área da teoria literária, ou seja, utilizam-se da psicanálise como um dos instrumentos possíveis na análise de textos.
Parece que algo em nosso mundo intelectual torna propícia a abordagem interdisciplinar, uma vez que também dentro da psicanálise é possível notar um interesse cada vez maior pelas relações entre arte e psicanálise. Há uma interpenetração das problemáticas que pode ser enriquecedora ou, às vezes, perigosa, quando perde de vista o que é peculiar a cada produção, podendo levar a reducionismos ou generalizações artificiosamente construídas.
A questão da interdisciplinariedade é historiada por Cleusa Passos, no seu capítulo inicial, quando faz questão de frisar que tem como "intento básico manter as peculiaridades do fenômeno literário".
Cleusa Passos mostra como os sucessores de Freud estudaram a literatura visando ao escritor. A psicobiografia é uma trilha redutora.
Lacan, dando uma virada nesse campo, afirma que a crítica literária não recebeu nada da psicanálise, e que a psicanálise não leva a qualquer juízo literário. Cleusa Passos coloca-se de acordo com Bellemin-No‰l, que, estando mais voltado para o literário, persegue as operações "pelas quais o desejo 'configura-se no fio das frases e das páginas'(...) (pág. 21) Mas, em "Psychanalyse et Littérature", Bellemin-No‰l chega a afirmar que só a psicanálise levará a uma verdade do discurso literário.
Conforme aponto em "O Hiato Convexo", se assim fosse, correríamos o risco de achar que "só a psicanálise teria acesso à verdade do discurso literário..." (pág. 142). Mas Cleusa Passos faz questão de acentuar que "elementos da teoria psicanalítica ganham maior ou menor relevo conforme sua presença na fatura da obra analisada" (pág. 23), afirmando não estar interessada em qualquer diagnóstico ou busca de estrutura edípica.
Já para Adélia Bezerra de Menezes, a literatura revelaria a realidade da alma humana. Aliás, foi por aí que Freud utilizou-se da literatura, nela encontrando provas de suas descobertas. Adélia B. de Menezes vai até Vico para mostrar o caráter fundamentalmente orgânico da formação das imagens (metáfora) e a importância do corpo nesse processo. Conforme afirmei em minha pesquisa sobre literatura e psicanálise, na poesia desvela-se o enraizamento do simbólico no não simbólico ("O Hiato Convexo", pág. 72), e daí a importância da literatura para a psicanálise; escutar um paciente como se lê um poema, a fala que sempre é fala-corpo.
Baseando-se em Freud, Adélia B. de Menezes afirma que o campo do simbolizado é muito restrito: o corpo, a sexualidade... Se a questão passa a ser o simbolizado e não o enraizamento do simbólico no não-simbólico, parece que o campo de trabalho se empobrece, tanto na análise literária quanto na clínica psicanalítica.
O lançamento desses dois livros faz com que estas questões emerjam de forma bastante esclarecedora, uma vez que são operadas em análise de textos -contos de Cortázar, "As Mil e Uma Noites", Graciliano Ramos, Clarice Lispector, o filme "Blade Runner" -pois ao mesmo tempo que próximas enquanto objeto de trabalho, também bastante distintas. O que só pode enriquecer a problematização relativa a como a psicanálise pode, ou não, ser usada na análise literária.

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