São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Artimanhas do duplo discurso

IVAN IZQUIERDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Folha informou alguns meses atrás que eu era o cientista mais citado do Brasil e, com isso, me fez alvo de perguntas as mais variadas. Por exemplo, muita gente -jornalistas, entrevistadores, colegas de profissão, empresários- tem me perguntado o que acho da posição do governo FHC sobre ciência e tecnologia.
Esta pergunta causa-me certo desconforto, porque tenho dificuldades em respondê-la. Posição? Pois é, o governo federal tem manifestado interesse e prometido apoio à ciência e tecnologia. Do discurso oral do presidente FHC, depreende-se um grau de conhecimento da importância dessas atividades para a sobrevivência do país, compatível com sua trajetória pregressa de universitário e cientista. Falo em sobrevivência, não em progresso ou desenvolvimento, porque é muito claro, hoje, que sem ciência não há tecnologia, e país sem tecnologia não tem condições de sobrevivência como entidade digna do nome.
Por exemplo, em recente pronunciamento, feito por ocasião da entrega de prêmios a alguns cientistas importantes, o presidente prometeu uma duplicação ou triplicação do atual minguado orçamento do setor. Esse discurso foi comentado favoravelmente até pelos órgãos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), normalmente oposicionista.
Eu tenho uma tendência menor à euforia que a maioria das pessoas, talvez porque já vivi demasiadas euforias coletivas e vi como acabaram. O milagre, o Plano Cruzado, o Cruzado 2, o alegre Masoquismo Patriótico de março de 1990 etc. Agora mesmo estou vendo, por exemplo, que "o fim da inflação" é um resíduo irredutível de 30% ao ano, com o dólar fixo, com recessão em setores importantes, com desemprego crescente...
Estou vendo, também, que o manejo da economia não está sendo tão idôneo assim, nem o das relações exteriores. O famigerado e também "patriótico" imposto de 70% aos carros importados, que fez cambalear o Mercosul, acabou, como era de esperar, batendo de frente contra a Organização Mundial de Comércio (ex-GATT). Ou seja, o Brasil ficou mal com todo o mundo e sem o imposto.
E foi aí que, lendo um jornal estrangeiro, percebi com espanto qual era o meu problema, ao tentar compreender e explicar a posição deste governo em relação à ciência e tecnologia. Nesse jornal falava-se do governo FHC como "o governo do duplo discurso". Abertura da economia, mas com moeda inconversível e impostos à importação. Reforma agrária, sim, mas com ministro da União Democrática Ruralista. País quase no Primeiro Mundo, mas com salário mínimo inferior ao do Paraguai. Fim da inflação, mas com inflação de 30% ao ano. ACM sim, mas ACM não. Banco Econômico sim, mas Banespa também. Ministério Extraordinário dos Esportes, com Pelé e tudo, mas sem orçamento. Malan, sim, mas com José Serra e Dorothea Werneck. Esta, até, com o mesmo sorriso que usava para justificar a hiperinflação do Sarney ou a "cleptopresidência" do Collor. Privatizações, sim, "pero no mucho". Ciranda financeira nunca mais, mas cirandão em dólar entre o paralelo baixo e os juros altos, sim.
E, pelo que estou vendo até agora, duplicação ou triplicação da verba para ciência e tecnologia, sim, mas sem verba.
Duplo discurso. Espero que nos próximos meses este governo me convença de que o jornal estrangeiro que li estava errado. É triste, contam os que jogam xadrez na praça, quando os de fora enxergam as jogadas melhor do que a gente.

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