São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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O dogma dos cosmólogos

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nativos de sarongue nos mares do sul, velhos sacerdotes da Babilônia e astrônomos bronzeados ou pálidos na Califórnia têm mais em comum do que poderiam imaginar (isso se algum dia soubessem da existência de, ou parassem para pensar, um no outro).
Trata-se de uma deslumbrada paixão por mitos de criação religiosos para explicar a mais antiga e irrespondida questão da humanidade: como se originou o universo?
A diferença é que os astrônomos fundamentam suas crenças em dados obtidos através de uma metodologia científica. Isso não os impede de agir de modo parecido com seus colegas pré-científicos.
"Hype' é uma palavra que os leitores da Folha podem ler com maior frequência na Ilustrada, na seção "Atitude". A palavra vem do inglês para "hipérbole" e significa exagerar demais algo.
"Hype" é uma estratégia de divulgação de cientistas empenhados em estudar a velha e irrespondida questão e conseguir verbas de pesquisa. Um caso clássico para estudo pela sociologia da ciência.
Quando foram divulgados os primeiros dados obtidos pelo satélite americano Cobe sobre a radiação cósmica de fundo, o suposto "eco do 'big bang"', não faltou quem fizesse "hype".
Tratava-se da descoberta da mão de Deus, do dedo de Deus, do toque de Deus, do sopro de Deus, do bafo quente de Deus.
A imprensa, obviamente, adorou. Só muito depois que começou a reflexão crítica mostrando o exagero da coisa.
Depõe a favor da "comunidade científica" -uma generalização imprecisa porém útil- o seu próprio modo de agir, acumulando mais dados e mais interpretações.
Novas pesquisas científicas começaram a pôr em dúvida o dogma do "big bang", essa ainda hoje hegemônica explicação da velha e irrespondida questão.
John Maddox, ex-editor da "Nature" (seguramente, a mais importante revista científica do planeta), quando esteve em São Paulo há alguns meses, estava excitado sobre artigos que a revista que então dirigia iria publicar.
Eram cálculos sobre a constante de Hubble que faziam o edifício do "big bang", se não implodir, pelo menos ser colocado na mesma posição da torre de Pisa (leia texto ao lado).
Apesar de sua vida curta e atribulada, o "big bang" conseguiu ter maior aceitação pela Igreja Católica do que, em sua época, a igualmente revolucionária idéia de que não é o Sol que gira em torno da Terra. Nem Nicolau Copérnico (1473-1543) nem Galileu Galilei (1564-1642) ou Isaac Newton (1643-1727) conseguiram convencer os papas dessa verdade cardeal.
O motivo é simples: a idéia de que o universo teria surgido de repente em uma "explosão" monumental a partir do quase nada lembra o mito de criação expresso em um dos livros da bíblia que os cristãos veneram, o Gênese.
A ciência não foi a fundo na explicação. O que havia então? Uma "singularidade".
Segundo o dicionário "Aurélio", em cosmologia, trata-se de uma "região do espaço-tempo onde as conhecidas leis da física sucumbem e a curvatura do espaço se torna infinita".
Ou seja: as próprias leis que a ciência descobriu penosamente ao longo dos séculos não bastam para explicar a mais antiga e irrespondida questão da humanidade.
Conclusão final: se, e quando, a ciência chegar a explicações mais satisfatórias, o "big bang" e teorias rivais poderão ser vistas do mesmo modo como os livros védicos da Índia.
Segundo esse conjunto de textos sagrados que representam a base da tradição religiosa do bramanismo e do hinduísmo indianos, no começo não havia nem existência nem inexistência, e ninguém -incluindo os deuses- sabe como surgiu o universo.
Qualquer semelhança com o "big bang" ainda parece ser mera coincidência.

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