São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Para Cabrera, Fidel é obcecado pelo poder

SILVIO CIOFFI
ENVIADO ESPECIAL AO REINO UNIDO

O escritor cubano Guillermo Cabrera Infante, principal desafeto político de Fidel Castro, diz que "há em Cuba uma espécie de aval oficial à prostituição" e que, se o regime atual terminar, não volta para Havana no primeiro avião.
Mas, quando Castro chegou ao poder, em 1958, Cabrera Infante apoiou a Revolução.
Ocupou então a diretoria do Departamento de Cultura e foi adido da embaixada de Cuba em Bruxelas, na Bélgica.
Vivendo seu exílio em Londres desde 1966, Cabrera Infante, 66, é um dissidente que virou verbete da Enciclopédia Britânica.
Autor de "Três Tristes Tigres" (1967) e "Havana para um Infante Defunto" (1979), o escritor -que já se reinvidicou um "reacionário de esquerda"- falou com exclusividade à Folha.

Cabrera Infante - (...) Fui vítima de problemas com as "más palavras" já na ditadura da Fulgêncio Batista, em 1952. Um conto me custou a prisão com criminosos -gente que tinha roubado bancos, assassinos, horrorosos. Só que se portaram comigo melhor do que a polícia de Batista. E não pude publicar contos com meu nome durante anos.
Folha - Em 1958 o sr. apoiou...
Cabrera - Sim senhor! Apoiei tudo: o 26 de julho, o Diretório, o Partido Comunista cubano e toda a gente que estava contra Batista. Folha - E seus pais foram fundadores do Partido Comunista cubano, não é?
Cabrera Infante - Desgraçadamente! E viviam muito mal por causa disso. Foram presos em 1936, quando a Guerra Civil começava na Espanha. Ficaram presos por Batista numa prisão na capital da Província, longe de onde vivíamos. Isso me causou transtornos na infância. Depois mudamos para Havana, onde vivemos numa pobreza espantosa, com meu pai se dedicando a "salvar os pobres do mundo", e não a sua família, que era pobre.
Folha - Em "Mea Cuba" o sr. diz que sua mãe tinha imagens de Cristo e de Stálin...
Cabrera - Nunca entendi como ela, que foi criada num convento, se deixou seduzir pelos argumentos de meu pai. Ambos eram stalinistas, mas minha mãe tinha a imagem do Coração de Jesus, porque na época sempre representavam Jesus com o coração para fora e mãos cheias de sangue. Ao lado havia um retrato de Stálin. Era esquizofrenia absoluta.
Folha - E, depois de 30 anos, como é viver em Londres?
Cabrera - Esse é um ambiente cubano no bairro de South Kensington. Assim é como vivo. Saio pouco. O que faço é escrever, ler e ver filmes até as 4h da manhã.
Viemos para Londres em 1966 e passamos a morar aqui em 1967.
Folha - Muito da sua obra literária foi feita aqui, não?
Cabrera - "Três Tristes Tigres" foi iniciado em Havana, continuou em Bruxelas e terminado em Madri, porque fomos, eu minha mulher, a atriz Miriam Gomez, viver lá. Até então eu havia publicado "Así en La Paz como en la Guerra" e "Um 0fício do Século 20". Os demais livros foram escritos aqui.
Folha - E se o regime de Castro acabasse, o sr. voltaria?
Cabrera - Não no primeiro avião. Minha presença em Cuba não teria utilidade. Lá o que vai fazer falta são os construtores, arquitetos, economistas, gente que saiba fazer negócios. Não preciso ver Havana agora, que é uma ruína completa. Um jornal espanhol publicou que, em um ano, caíram 600 edifícios de Havana. É um bombardeio interno. Gostaria de visitar Cuba depois de Fidel.
Folha - Como é que o sr. escreve seus livros e artigos?
Cabrera - Estou sempre anotando. Leio, tomo notas, vejo televisão e depois faço uso das notas -ou não faço. Recentemente escrevi um artigo para o diário espanhol "El País" sobre o centenário de Groucho Marx e fiz notas que serviriam para um texto de 20 páginas e que deveria ter apenas seis.
Folha - Falando do outro Marx e do seu apoio à Revolução. O sr. rompeu com Castro quando ele aderiu ao marxismo?
Cabrera - Não, sempre fui desencantado com ele. Fidel Castro realizou um engano. Apresentou-se como alguém que ele não ia ser. Disse que recuperaria a Constituição de 1940, que era bastante liberal e democrática, mas mandou alguns ao exílio, fuzilou e relegou outros à condição de não-pessoas. Quando esse processo ficou agudo, me restava decidir viver em Cuba, mas sem escrever. Teria que deixar de ser crítico, pois os filmes capitalistas estavam proibidos.
Fiquei dez meses sem trabalho e vivia de Miriam Gomez, uma atriz que participou do primeiro filme pós-Revolução. Ela ganhava dinheiro e eu estava sem trabalho. Amigos vinham me ver e fazíamos reuniões. Nessa altura eu me dizia um proxeneta do socialismo, porque vivia do dinheiro da minha mulher. E, para terminar com essas reuniões, me mandaram para uma Sibéria européia, que era a Bélgica. Estive lá três anos. Aí minha mãe morreu e tive de regressar. E vi uma Havana estranha, com gente que parecia zumbi. Decidi sair e, sem barulho, peguei minhas filhas e voltei para encontrar Miriam Gomez. Depois fomos à Espanha.
Folha - E porque o sr. mudou para Londres e deixou Madri?
Cabrera -Depois de nove meses em Madri, as autoridades não me deixaram continuar vivendo lá. Isso foi em 1965-66. Achavam estranho que alguém que esteve dentro da Revolução fosse viver na Espanha da época do franquismo. Aí um amigo, diretor de cinema, me convidou para vir a Londres. A diferença era enorme entre Madri e Londres em 1966. Pareciam mundos distintos. Era o tempo de "swinging London", de uma liberalidade extraordinária.
Já Fidel fez tudo para manter-se no poder e a única força que poderia sustentá-lo era a ex-URSS. Eu não tinha a oportunidade de ser em Cuba outra coisa que não um burocrata. Para Fidel, seu temperamento é a sua política: o que hoje é lei, amanhã é fora da lei, o que hoje é bom, amanhã não é.
A mim nunca interessou viver em outro lugar que não Havana, mas há uma coisa real: Fidel Castro fez de mim um escritor ao me exilar. Deixei de ser personagem de sua política cultural para ser uma pessoa independente.
Folha - E "Che" Guevara?
Cabrera - "Che" Guevara era um argentino, um estranho. Era como se fosse um americano que falava bem espanhol. Alheio ao caráter cubano, tinha uma ideologia repugnantemente stalinista. Depois mudou e se fez inimigo dos stalinistas cubanos -e isso foi uma das causas por que teve de sair de Cuba. Claro, a causa maior é que havia entrado em uma pugna ideológica com Fidel. Ele era pró-China e Fidel era pró-Moscou. Houve uma ruptura, e ele se foi, primeiro para a África, no Congo. Depois seguiu para a Bolívia e aí foi o seu final.
Folha - Em Londres há agora propaganda do turismo em Cuba, o sr. tem notado?
Cabrera - Isso é uma extraordinária campanha de Fidel Castro para conseguir dólares, agora que já não tem a subvenção soviética que lhe rendia US$ 5 bilhões ao ano. Então se dedica desesperadamente a conseguir dinheiro. O que era negativo, proibido e nefasto agora se exalta. O número de prostitutas é infinito e existe uma espécie de aval oficial à prostituição, ao turismo sexual. Isso não ocorre em outros lugares do Caribe.
Folha - Mas em Cuba há também história, identidade cultural, coisa rara no Caribe...
Cabrera - Não creio que isso interesse aos que hoje vão para lá.
Folha - O sr. acha que Fidel terá longa sobrevida política?
Cabrera - Fidel tem uma só obsessão e padece de loucura pelo poder. Tem boa propaganda, é um gênio da propaganda.
Deixou de ser comunista e faz uso de slogans como "socialismo ou morte", mas isso não existe. O que há é uma desenfreada busca de dólares e, portanto, de facilitar o capitalismo, desde que controlado pelo Estado. E o Estado é ele. É muito difícil desalojar esse tipo de ditador. Fidel Castro inaugurou na América a ditadura totalitária. Deve ainda ter tempo pela frente no poder, a menos que morra. Já que os homens são mortais, pode ocorrer um acidente, um derrame, porque não? Isso são situações que ele não pode controlar. Mas as situações que ele controla são para mantê-lo no poder. Agora há a formação de diálogos entre exilados e há quem ache que ele mudou... Havana hoje é uma ruína, a economia não existe, a safra de açúcar é a pior do século, as cidades caem, mas Fidel segue. A situação não é fácil, nem para quem mostrou coragem na luta contra Fulgêncio Batista, o ditador que o antecedeu.

Texto Anterior: A rua do Rio
Próximo Texto: Rabin é assassinado em Israel
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.