São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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A rua do Rio

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Uma Copacabana construída em cheiros me vem à memória. Ensolarado xadrez de odores: maresia, cerveja, óleos de bronzear, barris, serragem, incineradores e peixes fumegantes passeiam pelos microclimas das tardes dominicais, o vento fresco na esquina, o mormaço abafado passos à frente.
As famílias digerem o almoço tardio pelas calçadas no fim do sol, cortejo de loções, bermudas, sandálias, sorvetes e cafezinhos.
Não havia calçadão, a Atlântica estava mais próxima do Atlântico, e era uma delícia o futebol na areia, o Rian, o Caruso, a Lopes.
O Rio de Janeiro é uma cidade para exteriores. O esplendor da natureza e sua relativa harmonia arquitetônica -uma Paris perto da sobressaltada e desconexa São Paulo- são um convite às manhãs, ao entardecer, à praia, ao passeio público.
É longe das paredes que o Rio acontece. É na praia que se conhece a namorada, no encontro da esquina que se consegue o emprego, nas pedras portuguesas da orla que se encontra o amigo.
A rua sempre foi o melhor ponto da cidade, o lugar da mescla, da interação entre negros, mulatos, brancos, pobres, remediados e ricos. O samba.
Um dos aspectos mais dramáticos da decadência social do Rio, do bangue-bangue que se instaurou na cidade, é exatamente a transformação da rua em sinônimo de perigo. O lugar do medo.
Hoje passeio por Copacabana com grades nas retinas. Elas estão por toda a parte. Edifícios cercados, janelas cerradas, o cine Roxy enjaulado.
Um segurança negro, parrudo, saca o revólver para afastar a favelada e suas crianças da porta do restaurante -dentro, japoneses tiram fotos ladeados pela lagosta.
Andar olhando para os lados, andar olhando para trás, segurando a bolsa, vigiando o relógio, certificando-se da carteira. Eis em que se transformou o tradicionalíssimo passeio carioca.
As manifestações de rua que aconteceram durante a semana, contra a nova onda de sequestros que envolveu a cidade, tiveram, ainda que pequenas, o efeito simbólico de uma tentativa de reapropriação.
É como se o Rio dissesse chega, já estamos cercados, já estamos atrás das barras, não temos mais para onde ir -queremos a cidade, queremos a rua, queremos a vida de volta.
Sempre me perguntei por que o Brasil, o Rio especialmente, não seguia o exemplo da Itália nas reações aos atentados do crime organizado.
Se os italianos passam hoje -com todos as oscilações e tensões- por uma profunda reforma de costumes, muito deve-se à presença nas ruas de gente, estudantes na maior parte, protestando a cada ato de violência.
Uma bomba que explode, um crime que se comete -lá estão as praças ululando, cobertas pelo frescor de uma juventude que não quer mais viver num país de mafiosos, de bombas à luz do dia, de corrupção e complacência policial.
Como os italianos, os cariocas começam a ocupar as ruas, desapropriadas pela insegurança, para mostrar seu descontentamento.
Num país em que, como ficou provado nos últimos anos, as coisas só caminham sob pressão aberta da sociedade, o Rio perde tempo esperando enjaulado a morosidade de governantes mais ou menos bem intencionados.
A rua é do Rio e a ele deve voltar. Trocar o passeio pela passeata... Quem sabe, depois, a gente toma um sorvete em Copacabana.

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