São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cultura e desenvolvimento

CELSO FURTADO

Pensar o destino da humanidade deixou de ser tema de especulação gratuita de adivinhos para transformar-se em matéria de elaborados estudos da lavra de grupos de pessoas de reconhecida competência. Um desses grupos -convocado em 1992, conjuntamente pelo secretário-geral da ONU e pelo diretor-geral da Unesco e presidido por Javier Pérez de Cuéllar-, a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, acaba de concluir o seu trabalho, que será submetido às assembléias gerais desses órgãos nos próximos dias.
Os autores são 14 especialistas das ciências sociais e humanistas, provenientes da Europa, América do Norte e do Sul, Ásia e África, e sem nenhum vínculo oficial com os governos de seus países. Reuniram-se em várias partes do mundo e contaram com a colaboração de centenas de estudiosos em vários campos do saber.
A pergunta que emerge de todas essas discussões é simples e brutal: por que o aumento da riqueza que trouxe o desenvolvimento deixou tanta gente insatisfeita e tem permitido que a miséria continue a se alastrar? Que caminhos seguir para não continuar acumulando problemas sociais e ecológicos de natureza cada vez mais grave?
O desafio que temos diante de nós é o de conceber uma nova utopia, sem a qual dificilmente a sobrevivência da humanidade será assegurada.
Segundo as conclusões da comissão, os objetivos mínimos a alcançar no plano internacional são os seguintes:
1) assegurar as bases institucionais para que a temática cultura/desenvolvimento seja discutida e analisada no plano internacional;
2) iniciar um procedimento pelo qual normas que expressam princípios éticos que já vigoram a nível das nações sejam estendidas à área internacional e global;
3) instituir um fórum no qual se possa alcançar consenso em torno dos temas básicos que vinculam os valores culturais ao desenvolvimento.
A comissão assinala o fato de que os conflitos militares são cada vez menos internacionais e mais internos. Dos 82 conflitos verificados nos últimos três anos, 79 foram interiores às nações.
A causa fundamental desses conflitos tem sido a carência de desenvolvimento em um mundo dominado pelo consumismo, o que leva muitas populações ao desespero. Em vários países, modelos perversos de desenvolvimento privilegiam minorias e relegam a massa da população à miséria. É o que a comissão qualifica de desenvolvimento sem alma.
O compromisso com a segurança territorial deve ser substituído pela preocupação com a segurança das pessoas humanas, que somente pode validar-se mediante um desenvolvimento concebido no contexto cultural. Sugere-se que a comunidade internacional tome conhecimento de forma regular dos problemas que enfrentam as populações de culturas marginalizadas, destacando as práticas e políticas exemplares e assinalando as condenáveis, como as mutilações físicas e o fanatismo religioso.
Urge que se inicie no plano internacional uma pesquisa sobre os vínculos da cultura com o desenvolvimento, para detectar a dinâmica contemporânea da mudança cultural e a natureza e as causas dos conflitos étnicos. Com alta prioridade recomenda-se um programa de pesquisa sobre as inter-relações dos direitos da mulher com as mudanças socioculturais, com o objetivo de enfrentar formas insidiosas de discriminação ainda em vigor em quase todo o mundo.
O problema da preservação da herança cultural, considerada patrimônio da humanidade, é tratado de forma original. Sugere-se a mobilização de pessoas de boa vontade de todas as idades e nacionalidades, mediante a criação de um Voluntariado da Herança Cultural que atuaria de preferência nos países carentes de pessoal especializado.
Mas o tema mais inovador nessas proposições feitas à comunidade internacional diz respeito aos direitos culturais, que são objeto de consideração especial. São frequentes e conhecidos os casos de perseguições a indivíduos e comunidades por motivos culturais sem que as vítimas possam encontrar proteção nas estruturas jurídicas existentes.
Trata-se de diferenciar os direitos culturais (como o uso da língua própria) para colocá-los no mesmo nível de prioridades dos direitos humanos e assegurar-lhes a mesma proteção internacional. O primeiro passo nessa direção seria a elaboração de um inventário dos direitos culturais. O objetivo é caminhar para a aprovação de um Código Internacional de Conduta Cultural, que assegure a preservação da diversidade dos valores culturais compatíveis com os princípios éticos universais.
Problema não menos importante é o da aprovação de um conjunto de princípios éticos que regulem a ação dos governos, particularmente os dos países poderosos. Para avançar nessa direção faz-se necessário que se democratize a tomada de decisões nas instâncias mais altas da ordem internacional. É tema que já se debate atualmente na ONU.
Torna-se cada vez mais claro que as estruturas decisórias internacionais devem abrir-se a um processo de democratização, sem o qual o poder que exercem carece de plena legitimidade. Por outro lado os direitos dos indivíduos e das culturas com frequência são desrespeitados, o que também exige atenção internacional.
Com respeito a todos esses temas, inclusive o da manipulação da informação como forma de poder, a comissão avança recomendações precisas para orientar a ação dos governos e das agências internacionais. Trata-se de iniciar uma obra de reconstrução institucional que diz respeito ao futuro da espécie humana. Em síntese: nossa civilização somente sobreviverá se lograr aprofundar os vínculos de solidariedade entre povos e culturas em um sistema de convivência internacional cada vez menos tutelado e mais participativo.

Texto Anterior: PARAÍSO; INEDITISMO; VACINADO
Próximo Texto: Ciência e democracia cultural
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.