São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Ciência e democracia cultural

GILBERTO VELHO

No recente 19º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado em Caxambu (MG), ficaram evidentes a riqueza, o dinamismo e a complexidade da reflexão e crítica socioculturais no Brasil contemporâneo.
Ao lado da expressividade numérica da reunião, com mais de mil participantes e cerca de 300 eventos, ressalte-se a variedade de temas, pontos de vista e perspectivas. Discutiram-se tanto questões de ponta da ciência social contemporânea como problemas específicos da sociedade brasileira. A junção dessas preocupações constituiu-se em uma das principais marcas do encontro.
Emblematicamente a homenagem a Florestan Fernandes expressou, com intensidade, essa perspectiva. As comunicações, apresentadas em mesa-redonda, de autoria de Antônio Candido, Roque Laraia, Maria Arminda Arruda, José de Souza Martins e Otávio Ianni, analisaram a trajetória de um autor que conseguiu estar na vanguarda da ciência social internacional ao mesmo tempo que se voltava de corpo e alma para a discussão e encaminhamento das questões e impasses da sociedade brasileira.
Diferentes preocupações, estilos disciplinares e pessoais conviveram em profícua interação nos três dias da reunião. Mas, a par de todas as variações, prevalecia uma identidade maior de cientista social, que congregava antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, historiadores, economistas, pesquisadores nas áreas de letras e comunicação, linguistas etc.
Não se tratava de nenhum projeto homogeneizador nem empobrecedor das especificidades disciplinares, mas sim a ênfase em um campo de comunicação onde as diferenças são valorizadas para que a troca e o diálogo sejam mais ricos e estimulantes. A possibilidade de impasses e conflitos não está excluída desse quadro e certamente registraram-se situações em que não se chegou a um consenso ou mesmo a um acordo sobre temas científicos e/ou políticos.
Na realidade, o que uma reunião como a da Anpocs pode nos trazer, de modo mais abrangente, é uma reflexão sobre a democracia nas sociedades moderno-contemporâneas como a brasileira. Não se trata de, simplisticamente, fazer analogias forçadas entre uma reunião de acadêmicos e a sociedade, mas buscar extrair consequências mais gerais a partir de uma experiência intensa de debate e negociação de diferenças.
Os cientistas sociais desempenham papéis específicos, mas não vivem insulados em um mundo à parte. Conhecem outras situações e experiências que, no mínimo, tornam complexas suas biografias e visões de mundo. Família, religião, lazer, diversas formas de sociabilidade constituem seu cotidiano. Certamente a política e a vida pública estão sempre presentes, embora em graus diversos, nas suas trajetórias individuais.
A maneira de elaborar essa variedade de experiências, eventualmente contraditórias, produz diferentes estilos e modelos de carreira. O exemplo de Florestan Fernandes, respeitado e homenageado, é percebido como referência fundamental, como modelo possível, mas não exclusivo de carreira intelectual.
Valorizam-se, assim, as diferenças que, em lugar de serem encaradas como problema, tornam-se fonte permanente de estímulo e criatividade. O confronto de pontos de vista, a tentativa de diálogo, o debate mais ou menos acirrado e a permanente circulação de idéias configuram o que há de mais promissor na vida intelectual.
Isso certamente não equivale a encará-la como um permanente campo de batalha ou mesmo uma liça em que a disputa e a ocupação de terreno material e/ou simbólico tudo explicam e justificam. A construção do conhecimento a longo prazo, o acúmulo progressivo de avanços, a elaboração às vezes quase imperceptível de novas sínteses, a cooperação e a troca constituem uma dimensão nem sempre consciente, mas inarredável não só da vida científica e acadêmica, mas da criatividade cultural como um todo. Essa constatação de que a cultura é um processo permanente de negociação, trocas e mudança contraria as visões imobilistas que congelam fenômenos e fronteiras socioculturais.
Encontros como o da Anpocs são momentos privilegiados para analisar e viver esse dinamismo nas relações sociais e inovação cultural. Em geral o nível e as características de eventos culturais variam em função da própria heterogeneidade constitutiva da sociedade brasileira. Tipicamente estão respondendo à vontade de interagir, aprender e aperfeiçoar-se, aspiração legítima em uma sociedade onde se multiplicam projetos de cidadania.
As motivações para a negociação e o diálogo entre diferentes atores e categorias sociais estão indissoluvelmente associadas às próprias dificuldades do cotidiano. A desigualdade social, os conflitos de toda espécie, a evidência da violência, a perplexidade diante da política e da vida pública e as transformações da modernidade em geral produzem um quadro que aguça o espírito crítico de múltiplos setores e segmentos, ávidos de resposta e participação.
A possibilidade de combinar diversos tipos de conhecimento, acionando-os em momentos e níveis de realidade específicos, é experiência bastante difundida na sociedade moderno-contemporânea. Essa troca e intercâmbio cultural entre diferentes mundos e categorias sociais certamente possibilita uma perspectiva mais ampla no que se refere à mudança cultural e às transformações sociais. A relativa liberdade individual, dentro de um campo de possibilidades, com a valorização da opção e da escolha, é a base de elaboração de projetos democráticos amplos onde a discussão e o diálogo são motores constantes.

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