São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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a ditadura da informação

MARILENE FELINTO

Vingança involuntária contra a imprensa, contra a ditadura da verdade fatual, é isso que revelou a gargalhada do presidente americano, Bill Clinton, em entrevista coletiva junto com Boris Ieltsin, presidente da Rússia, na recente comemoração dos 50 anos da ONU, em Nova York.
Foi engraçado ver Clinton explodir, sacudindo-se todo, vermelho como um camarão, sem conseguir controlar a longa gargalhada. Um repórter perguntou a Boris Ieltsin o que ele achava da avaliação da imprensa de que o encontro entre ele (Ieltsin) e Clinton, para discutir a guerra da Bósnia, seria um fracasso.
Ieltsin imediatamente respondeu que achava que a imprensa é que era um desastre. O repórter calou a boca e Clinton abriu a dele, na mais espetacular gargalhada da história da quebra de protocolos diplomáticos. Era o homem público se vingando inconsciente e oportunamente -graças à presença de espírito de seu convidado- de seus perseguidores mais incômodos e eficazes.
Não custou a Ieltsin responder com cumplicidade ao ataque de riso de Clinton: também ele, bufão que molesta funcionárias diante das câmeras e aparece cambaleando bêbado em cerimônias oficiais, tem sido alvo predileto de jornalistas.
A gargalhada explodia contra o poder de polícia que a imprensa consolidou para si neste século. Mais correta e independente (ao menos parte dela) do que os governos, mais eficiente do que a própria polícia às vezes, a imprensa foi se transformando em fórum de defesa da sociedade civil. O justo status adquirido gera, por outro lado, uma estranha superestima capaz de confundir público e jornalista.
A disputa por vagas nos cursos de comunicação cresceu de modo alarmante. Já vi crianças cercarem na rua um repórter do noticiário televisivo para pedir autógrafo. De repente jornalista virou ídolo -quando deveria ser um mero técnico de quem se espera apenas que redija com acerto dentro das normas da língua culta.
Paralelamente à inglória luta pela precisão na transmissão da notícia, ocorre o fenômeno da fascinação que embebeda leitor e jornalista. Via de regra o leitor traça um perfil equivocado do jornalista a partir do que ele escreve: se é sobre mulheres, é feminista; se é sobre gays, é gay; se é sobre negros, é da "causa" negra. Julgam-no cúmplice, mandam-lhe convites de toda ordem.
Essa distorção na imagem superestimada do profissional é estimulada (se não foi criada) pela própria imprensa. Ao jornalismo de opinião, por exemplo, interessa viver de glórias. Gente dessa área cita-se a si mesma (livros, artigos, filmes próprios) em suas colunas, numa falta de modéstia proposital: já que ninguém dá importância à obra deles, eles brincam de autopropaganda. A obra continua imprestável.
Schopenhauer culpa o próprio leitor pela proliferação de jornalistas ruins e equivocados: "Uma multidão de escritores ruins vive exclusivamente do obtuso desejo do público de somente ler o que acabou de ser publicado: são os jornalistas".
Mas a culpa é dos jornalistas. Como os críticos literários (com seus escritores protegidos, os professores e literati) também citados pelo filósofo, eles apóiam uns aos outros em vez de trabalhar em favor do público contra os impostores e os incompetentes. Desses nunca se deve esquecer de gargalhar.

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