São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Tradição de pluralidade

JOSÉ JOBSON DE ANDRADE ARRUDA
REVISTA DE HISTÓRIA, Nº 132 (3ª SÉRIE)

Departamento de História da USP São Paulo, 1º semestre de 1995, 154 págs. R$ 10,00
O número 132 da "Revista de História" surge completamente renovado no seu desenho gráfico e no seu conteúdo temático. Caso raro de longevidade editorial, a revista deve sua longa experiência à tenacidade do prof. Eurípedes Simões de Paula, que a transformou na "Revista do Professor Eurípedes", até sua morte, em 1977. Pretendia ser uma espécie de réplica da revista "Annales", instrumento decisivo na batalha historiográfica em que se envolveram Fernand Braudel e seu grupo na França do pós-guerra. Sua proposta editorial contemplava a mais ampla pluralidade, sem discriminar objetos, abordagens ou autores, virtude sem dúvida apreciável.
A análise do conteúdo deste número poderá dar-nos uma idéia das preferências historiográficas. Enquanto apenas um artigo reflete sobre o tema da política, da revolução e da ideologia, e dois se ocupam da questão da resistência e da exclusão social, sete outros tratam da história da cultura, das representações, do imaginário, da utopia, do cotidiano e, principalmente, da sexualidade. Se este for o signo das novas intenções, a identificação com os postulados da "Nouvelle Histoire" é evidente. Ótimo que assim seja; perigoso se somente assim for, isto é, se não se preservar a tradição plural inscrita na carta de fundação, traço identitário da trajetória intelectual do departamento de história da USP, que se exprime diretamente na diversidade de sua produção.
Oportuno, desejável mesmo, que sob nova apresentação o velho instrumento ressurja rejuvenescido e que o conteúdo seja capaz de contemplar a abertura e recusar o fechamento historiográfico: que consiga ser uno na diversidade; que não negue aos seus leitores, especialmente aos alunos, a experiência oxigenadora da variedade metodológica, sem a qual fica inviabilizada a renovação dos paradigmas da história.
Se a técnica da comunicação visual preenche as necessidades do leitor mais exigente, confesso preferir que todos os artigos fossem apresentados em português, mesmo enfrentando os riscos das traduções. A publicação de artigos em idioma estrangeiro afina com a utensilhagem erudita indispensável ao conhecimento histórico mas, com toda evidência, restringe a divulgação dessas mesmas idéias para público mais amplo, inclusive de iniciados na confraria.
A identificação com os pressupostos da "Nouvelle Histoire" e, por decorrência, com os procedimentos da antropologia e da etnologia reforça a questão da alteridade, da busca do outro nas profundezas do passado, realçando os domínios da história cultural, do estudo das mentalidades, da melhor compreensão da face litúrgica das sociedades históricas, instaurando novas temporalidades, perscrutando o papel dos fenômenos tradicionais que somente podem ser apreciados no nível da longa duração. Contribuições efetivas a adensar o conhecimento, cujo risco iminente é a quebra da unidade da experiência histórica que pode redundar em completo relativismo.
A história da cultura renasce entre nós, ela que fora relegada a um plano secundário pela linhagem historiográfica imperante nos anos 60 e 70, dominadas pelas análises marxistas. As interpretações decorrentes concentravam-se nos temas econômicos e sociais, considerados politicamente urgentes, tangenciando apenas a história do cultural, considerada pelo marxismo vulgar mero desdobramento das bases materiais.
Essa trajetória repõe o nosso deslocamento. Continuamos a reverberar as invenções historiográficas forâneas. A criatividade limita-se ao espaço de nossa experiência específica. Somos, por isso mesmo, eternos "late comers". Enquanto nos anos 70 as análises baseadas nos princípios marxistas, críticos ou vulgares, ainda dominavam o cenário intelectual brasileiro, na França, já em 1971, Pierre Nora anunciava a implosão da história no lançamento da "Bibliotèque des Histoires", consolidada em 1974 com a publicação de "Faire de l'Histoire", a bíblia da nova história, cujo ideário somente nos anos 80 frutificou por aqui.
Hoje, quando relançamos a "Revista de História", identificada com essa matriz cultural, Georges Duby, um dos seus expoentes, já afirmara: "Tenho a sensação de sufocamento" ("Magazine Littéraire", dezembro de 1987) e François Dosse, na sua "História do Estruturalismo", de 1991, anunciara que "o sujeito e a história estão decididamente de volta", ancorado em Gérard Genette, Claude Hagège e Tzvetan Todorov, entre outros, que repuseram a dimensão histórica da expressão literária, da linguagem, a partir da noção de transtextualidade, da dialógica e da recuperação da ideologia, responsáveis pelo retorno à historicidade.
Emblemático. Enquanto nos rincões mais distantes do país ainda ecoam certas formulações reducionistas dos anos 70, nos centros mais modernos instala-se o paradigma contrário que remete à hegemonia das representações sociais. Em Paris, Duby sente-se emparedado e Dosse detecta a volta do sentido na história, antevendo uma nova síntese que enlace os ganhos da história totalizante com as reais conquistas da nova história, que amalgame razão e imaginação, racionalidade e narração, orientação prática e fascinação estética.
No concerto das revistas de história publicadas no país -e foram muitas nos útimos meses-, a "Revista de História", em sua nova fase, tem um lugar de destaque. À semelhança do que já havia concluído Fernando Novais, ao analisar a "Revista Brasileira de História", da Anpuh, o momento é de extrema fertilidade e traduz o vigor da disciplina histórica no Brasil, apontando os rumos da sua recuperação como modo de reflexão, com sua vocação integradora ante as demais disciplinas, arregimentáveis em torno de seu sistema de pensamento.

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