São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Três visões de Canudos

ROBERTO VENTURA

A Imitação dos Sentidos - Prógonos, Contemporâneos e Epígonos de Euclides da Cunha Leopoldo M. Bernucci Edusp, 346 págs. R$ 47,00

Canudos, o Povo da Terra
Marco Villa Ática, 278 págs. R$ 27,00

O Sertão Prometido - O Massacre de Canudos
Robert M. Levine Tradução: Monica Dantas Edusp, 392 págs. R$ 30,00

A guerra de Canudos e seu maior intérprete, Euclides da Cunha, autor de "Os Sertões", vêm despertando interesse constante por parte de historiadores e intérpretes literários. Nesses três lançamentos recentes, Euclides é criticado quer pelo uso de fontes sem o devido crédito, quer pelos erros de interpretação sobre a comunidade e seu líder, Antônio Conselheiro.
Leopoldo Bernucci, professor de literatura latino-americana na Universidade do Colorado (EUA), discute em "A Imitação dos Sentidos" como Euclides incorporou ao seu relato imagens e idéias de artigos de jornal, de relatórios militares e governamentais, de ensaios históricos, como o "Facundo" (1845), do argentino Domingo Sarmiento, e de romances históricos de Victor Hugo e Afonso Arinos.
Bernucci é meticuloso na análise dos empréstimos entre Euclides e outros escritores. Mas faz pouco sentido sua crítica a Euclides pela falta de rigor na citação de fontes. Como correspondente de "O Estado de S. Paulo", Euclides presenciou pouco mais de 15 dias de uma guerra que se estendeu por quase um ano, de novembro de 1896 a outubro de 1897, no sertão da Bahia. Recorreu a notícias de jornais e a documentos oficiais numa época em que não havia tanta preocupação, como hoje, na enumeração exaustiva de fontes.
"O Sertão Prometido, do norte-americano Robert Levine, e "Canudos, o Povo da Terra", de Marco Villa, da Universidade Federal de São Carlos, são estudos históricos sobre Canudos. Publicado em 1992 como "Vale of Tears" (University of California Press), o livro de Levine, professor de história na Universidade de Miami, é lançado agora em tradução brasileira. Ambos colocam sob suspeita a imagem de Canudos criada por Euclides. Villa chega a afirmar, com exagero, que "Os Sertões" se tornou uma "barreira" para o conhecimento do conflito.
Euclides teve, sem dúvida, uma visão negativa de Canudos, que chamou de "urbs monstruosa" e considerou comunidade primitiva e até promíscua, onde haveria o "amor livre" e o coletivismo dos bens. Tal viés se deveu, em parte, ao contato com uma cidade semidestruída pelos bombardeios e pelas privações da guerra. Foi tributário ainda de sua formação científica, que combinava evolucionismo e positivismo, e dos preconceitos raciais próprios à sua época, que traziam a crença na inferioridade dos grupos não-brancos.
Euclides atribuiu, de forma errônea, a Antônio Conselheiro a autoria de profecias apocalípticas, encontradas em manuscritos, que anunciavam o fim do mundo e o retorno de d. Sebastião para combater as tropas republicanas. Os sermões escritos pelo líder de Canudos, a que Euclides não teve acesso enquanto escrevia "Os Sertões", revelam um líder religioso adepto de um catolicismo tradicional, centrado na idéia de penitência, sem sugestão de espera milenarista ou de suposta personificação do Messias.
Tanto Villa quanto Levine questionam idéias estabelecidas sobre Canudos, como o caráter messiânico do movimento, e mostram dúvidas sobre o grau de adesão de seus habitantes às crenças sebastianistas apontadas por Euclides. Para ambos, o extermínio da comunidade se deveu menos ao seu anti-republicanismo do que a fatores políticos, como a disputa entre civilistas e militaristas, ligada à sucessão presidencial; os conflitos entre facções partidárias na Bahia; a atuação da igreja contra o catolicismo pouco ortodoxo dos beatos; as pressões dos proprietários de terras contra Canudos, cuja expansão trazia escassez de mão-de-obra e rompia o equilíbrio político da região.
Levine observa que a atração exercida pelo Conselheiro não era predominantemente messiânica, já que a comunidade oferecia melhores condições de vida do que outras regiões do sertão nordestino. Villa é ainda mais ousado e original ao negar que se tratasse de uma comunidade messiânica ou milenarista. O fim do mundo teria sido, para ele, apenas um elemento do discurso religioso, mas não o principal fator na organização da vila, que manteve ligações com a economia regional.
"Canudos, o Povo da Terra", de Marco Villa é mais preciso e sintético do que o livro de Levine. Villa destaca-se, como historiador, pela pesquisa rigorosa, ainda que seja pouco cauteloso quanto à possibilidade de difusão de crenças sebastianistas e milenaristas entre os seguidores do Conselheiro. É bem verdade que os oficiais e jornalistas da época recorreram ao fanatismo religioso, para explicar a resistência dos conselheiristas e a derrota de três expedições militares contra a vila. Mas a hipótese de circulação de idéias milenaristas, descartada por Villa, permite dar conta de aspectos do conflito, como a intensa migração para Canudos em pleno acirramento da guerra e a luta heróica e quase suicida dos conselheiristas contra o Exército.
Na edição brasileira de "O Sertão Prometido", os textos citados por Levine foram traduzidos, com exceção de "Os Sertões", da versão norte-americana, o que prejudica o caráter documental do livro. Mais grave porém são os erros factuais que o autor comete, inadmissíveis em uma obra histórica. A ação militar contra Canudos não durou quase dois anos, mas pouco menos de um ano. O ataque aos jornais monárquicos no Rio e em São Paulo, após a notícia da derrota da terceira expedição, não ocorreu em fevereiro de 1897, mas no mês de março. Canudos não se rendeu, pois lutaram até a morte os conselheiristas que não optaram pela fuga ou rendição.
São ainda maiores os erros de Levine a respeito de Euclides. Este não tinha "aparência amulatada", sendo descabido compará-lo a escritores negros ou mulatos, como Machado de Assis, Lima Barreto e Nina Rodrigues. Foi seu pai, e não o futuro sogro, o general Solon Ribeiro, quem interveio para abrandar sua punição ao ser desligado da Escola Militar em 1888, por ato de protesto contra a monarquia.
Depois, foi o futuro sogro, e não Benjamin Constant, quem o ajudou a regressar ao Exército após a proclamação da República. "Os Sertões" foi publicado a partir de 1911 pela Livraria Francisco Alves, e não pela Laemmert, que havia lançado apenas as três primeiras edições.
Villa e sobretudo Levine interpretam "Os Sertões" de forma muito esquemática, com base em uma suposta oposição entre litoral e sertão, entre civilização e barbárie. Preocupados em apontar os equívocos de Euclides, não perceberam a ambiguidade de sua narrativa histórica, que transita entre a literatura e a ciência.
Não deram tampouco a devida importância ao seu impacto literário e cultural, com uma extraordinária recepção, reedições sucessivas e inúmeros estudos. Outras obras até mais fidedignas, como "O Rei dos Jagunços", de Manoel Benicio, não tiveram a mesma repercussão.
Levine chega a reconhecer a ambivalência de Euclides no retrato do sertanejo como raça retrógrada e combatente corajoso. Mas enquadra, de forma errônea, Euclides no que chama de "visão do litoral", própria às elites urbanas que importavam técnicas e idéias da Europa e desprezavam a vida rural como rústica e primitiva, tomando Canudos como símbolo do choque entre racionalidade urbana e atraso rural.
Euclides criticou justamente tal racionalidade urbana e suas pretensões civilizatórias, ao denunciar o massacre cometido pelo Exército, em nome da ordem e do progresso. A partir da cobertura ao vivo dos momentos finais da guerra, ganhou distância crítica frente ao ideário republicano e percebeu a ausência de intuito político dos seguidores do Conselheiro, cujo monarquismo era, antes de tudo, mítico e religioso.
Adotou, em "Os Sertões", um modo historiográfico ousado, ao dar um arranjo poético-científico aos fatos selecionados. Sua narrativa oscila entre a perspectiva científica, do determinismo do meio e da raça, e a construção literária marcada pelo fatalismo trágico, que vê inscrito na própria natureza. Recorreu a formas de ficção, como a tragédia e a epopéia, para dar conta do horror da guerra. A epopéia gloriosa da República, pela qual combatera na juventude, adquiriu caráter trágico no violento massacre de que foi testemunha em Canudos.
Euclides mostrou a multiplicidade de tempos históricos e culturais e traçou paralelos entre os dois lados do conflito, entre o soldado e o jagunço, entre a República e Canudos, mergulhados no mesmo fanatismo. Revelou, com pessimismo irônico, as ilusões dos ideais de progresso que pregavam a reprodução da experiência européia. Ao construir uma ampla interpretação do Brasil, inseriu a história da guerra em um enredo capaz de ultrapassar a significação dos fatos que lhe deram origem.

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