São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Mil anos de filosofia

JOSÉ CARLOS ESTÊVÃO

A Filosofia na Idade Média
Etienne Gilson Tradução: Eduardo Brandão Martins Fontes, 949 págs. R$ 37,50

A primeira edição de "A Filosofia na Idade Média", de Étienne Gilson, é de 1922. Desde então, como lembra o próprio autor num prefácio 20 anos posterior, publicou-se um grande número de "histórias da filosofia medieval", muitas de excelente qualidade. No entanto, a obra de Gilson permanece insuperada.
À primeira vista, é surprendente. O conhecimento atual de filosofia medieval é muitíssimo maior do que era possível na primeira metade do século. Neste meio tempo, descobriu-se, entre a respeitável massa de documentos ainda inéditos, um número significativo de obras, precisou-se a atribuição de autoria e de datação, refizeram-se velhas edições, surgiram vastas edições críticas e comentou-se em grande escala. Seria de se esperar que, como tantos outros, o texto de Gilson envelhecesse, ainda que mantendo a dignidade de um momento necessário e fecundo da elaboração histórica. Acontece que não é assim.
A obra é construída com um extraordinário arsenal erudito, percorrendo sucinta e rigorosamente um vasto conjunto de autores, que abrange quase um milênio de especulação filosófica, o que já seria uma façanha. Alguns dos filósofos cujas idéias são expostas mereceram do autor extensos comentários monográficos, igualmente magistrais, de que são exemplos as apresentações de Tomás de Aquino, Agostinho, São Bernardo, entre outros. Mas não é só a tais méritos que o trabalho de Gilson deve sua perenidade e sim à sua acurada percepção histórica, ainda que por um viés muito particular.
Sua "Filosofia Medieval" move-se de maneira perceptível e harmônica, sem que as passagens de um momento a outro, de um autor a outro, afetem a compreensão específica de cada um. É verdade que tal movimento só se torna possível graças à maneira como molda o objeto pelo qual depois se deixa conduzir. Bem mais do que uma "história da filosofia na Idade Média", o livro faz a história da filosofia de filósofos cristãos até o fim da Idade Média. Apesar de situar os dois capítulos iniciais dedicados à Patrística na Antiguidade tardia, muçulmanos e judeus medievais, no entanto, ali só comparecem a título de fontes de influência. Não se trata exatamente de alguma "filosofia cristã", expressão cuja legitimidade Gilson defendeu polemicamente, mas que não lhe parecia adequada para o quadro que aqui se apresenta, isto é, o de autores que, sendo cristãos e, na maioria dos casos, teólogos, trabalharam a partir da herança filosófica grega. A filosofia medieval que apresenta é "uma abstração extraída dessa realidade, mais vasta e mais abrangente, que foi a teologia católica na Idade Média".
Dado este recorte, tece-se uma teia de referências constantes, de repertório comum e problemas recorrentes -algo que talvez se pudesse chamar de uma problemática-, que, ao lado da acurada exposição das obras individuais, viabilizam a passagem interna, sem violência, de um autor a outro. Ambas as abordagens, a compreensão da obra de cada autor na sua especificidade e a "disputa" entre os autores, são igualmente cuidadosas e bem dosadas.
Gilson se fez historiador da filosofia tendo em vista um propósito filosófico: assumidamente tomista, não conseguia esconder seu desagrado com os muitos "neotomismos" ("essa quadratura do círculo", dizia ele) em voga na primeira metade do século. Nenhum antídoto lhe parecia melhor do que a leitura das fontes e sua correta compreensão interna. Atacou a questão sistematicamente: do trabalho inicial de edição de Descartes passou às "fontes escolásticas" do sistema cartesiano e, depois, ao estudo aprofundado dos escolásticos.
O fim visado é, em primeiro lugar, recuperar Tomás de Aquino, arrancando-o à confusão de leituras que misturavam ecleticamente comentadores do século 17, um tomismo de manual e temas e abordagens modernos. Num segundo movimento, o que se busca é subtraí-lo ao domínio de uma ortodoxia pouco atenta ao rigor filosófico, mostrando que não há uma "escolástica medieval" mais ou menos tomista (cujas teses poderiam ser "acrescentadas" ao tomismo ou eliminadas como erro superado, ao gosto de cada um) e sim, apesar de um certo solo comum, um pulular de concepções díspares e concorrentes.
Ou seja, é verdade que a história da filosofia limpa o caminho para a exposição da filosofia. O acerto de contas com filosofias adversas é feito noutras obras, em especial em "A Unidade da Experiência Filosófica" (1), onde são duramente criticados os "desvios" -em relação à verdade- que são o "teologismo" e o "logicismo" dos medievais e o "matematismo" dos modernos. Por outro lado, não se trata de mero recurso didático, uma vez que não se ascende à filosofia senão pela história da filosofia, isto é, pela reatualização dos "experimentos filosóficos" que só a história nos oferece. No mínimo, zomba o autor, para que não ocorra -como nessas universidades "onde a historiografia é considerada prejudicial para a originalidade"- que "algum jovem, feliz ainda em sua ignorância", volte a descobrir teorias expostas há séculos...
Independentemente das opções pessoais do autor, o que ele nos oferece em "A Filosofia na Idade Média" é um excelente roteiro para iniciar tais "experimentos filosóficos", no que diz respeito a um período particularmente rico da história do pensamento no Ocidente. Roteiro quase indispensável para quem pretende obter uma visão de conjunto deste recorte na história da filosofia ou iniciar-se na leitura de autores como Agostinho, Anselmo, Abelardo, Tomás de Aquino, Ockham.
É verdade que se pode dizer que a abordagem de Gilson é parcial e deixa na sombra autores e obras que, hoje, talvez nos interessem tanto ou mais que aqueles sobre os quais se demora, sendo particularmente pobre na referência a temas específicos, como por exemplo os que dizem respeito ao desenvolvimento da lógica e das ciências. Há uma tendência atual, nem sempre bem sucedida, de revalorização dos autores que escaparam ou se confrontaram com problemas especificamente teológicos. Mas convém não esquecer que antes da obra de Gilson era bastante controverso que se pudesse mesmo falar de "filosofia medieval" -pois que "filosofia" é essa que se mantém tão apegada a "mistérios" teológicos inacessíveis à razão? É na "História" de Gilson que, para nós, a Idade Média adquire cidadania filosófica. Preencher suas lacunas só tem sido possível quando, ao invés de suprimi-la, nós a pressupomos.
A tradução de Eduardo Brandão parece, em geral, correta (embora menos técnica do que o texto merecia), e a tarefa não deve ter sido fácil, frente a um texto que combina um estilo de exposição ao mesmo tempo elegante e de extremo rigor conceitual. O reparo que se pode fazer é quanto à tradução dos nomes próprios. Neste caso, como os medievais foram antes "latinos" do que "nacionais", a regra é traduzi-los sempre. Acontece que às vezes soa mal: preferimos Fílon de Alexandria, meio à francesa, a "Filão". Mas não nos incomoda dizer Platão. A tradução de uma obra deste porte deve contribuir para fixar essas formas segundo critérios sistemáticos -ainda que com as devidas exceções ditadas pela tradição. O que não é admissível é a variação aleatória: Pedro Abelardo ao lado de vários "Pierres", Jean Gerson, ao invés de João. Por que Robert e não Roberto Grosseteste? João Escoto Erígena e Duns Scot etc. Seria bastante conveniente que na próxima edição se corrigissem essas impropriedades.
Por fim, é de lamentar a exclusão dos índices remissivos. Típica "economia" editorial que desrespeita os direitos do leitor/consumidor.

NOTA
1. "The Unity of Philosophical Experience", New York, Charles Scribner's Sons, 1938.

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