São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Pós-moderno, por que não?

MARIA CÉLIA PAOLI

Pela Mão de Alice: o Social e o Político na Pós-Modernidade
Boaventura de Sousa Santos Cortez Editora, 348 págs. R$ 33,00

Boaventura de Sousa Santos pensa que é inútil convocar as promessas da modernidade para abrir os caminhos democráticos e emancipatórios da crise contemporânea deste final de século. Pois não se trata, a seu ver, de "mais uma" crise do mundo moderno. A tragédia real dos tempos que correm é feita de uma simultânea crise dos processos de regulação social e de seu possível potencial emancipador, incluindo-se aí as formas consagradas de se conceber e pensar a sua tensão no interior das categorias da modernidade.
É esta simultaneidade que desenha uma crise de exaustão do paradigma moderno, incapaz de regenerar-se a partir de seus próprios pilares. Para Boaventura, à medida que a trajetória da modernidade se identificou com a trajetória do capitalismo, a regulação encapsulou seu lado emancipatório. Concretamente, isto quer dizer que as soluções de compromisso já experimentadas historicamente entre Estado, mercado e comunidade -e suas correspondentes racionalidades (do direito moderno, da ciência e técnicas modernas e das artes e literatura modernas)- colapsaram variavelmente em um oceano de irracionalidades acumuladas, do qual são testemunhas a degradação ambiental, o aumento da população e as disparidades e desigualdades entre centro e periferia, a miséria e a fome que convivem com a abundância, as guerras étnicas e religiosas, a dependência do indivíduo em relação ao consumo mercantil, os modos selvagens de destituição dos direitos no mercado de trabalho -a lista é enorme, como sabemos.
Ponto por ponto, este conjunto de questões é detalhadamente analisado nos dez ensaios que compõem o livro, em uma trajetória onde o reconhecimento feito das maravilhas, das tragédias e dos espelhos da modernidade decididamente não pode levar Alice de volta ao apaziguamento do conhecimento moderno. Pelo contrário, o autor joga-se na aventura de construir, para as ciências humanas, um espaço onde novas formas de pensar o conhecimento e a ação possam abrir caminho para a invenção de alternativas cognitivas, políticas e subjetivas no contexto contemporâneo. Utopia? Sem dúvida, responde o autor: diante do vazio do futuro, resta para nós perder o medo de reinventá-lo, para além da crítica às ambiguidades da modernidade -já feita à saciedade, segundo pensa.
Como traçar os caminhos dessa reinvenção? Boaventura explora o "capitalismo desorganizado" de hoje, onde o funcionamento do princípio do mercado confina o Estado e deslegitima as formas de sociabilidade já antes propostas tanto pela fase liberal quanto pela fase organizada do capitalismo. Mas este mesmo movimento desoculta outras sociabilidades, práticas e culturas que a modernidade subalternizou, excluiu, marginalizou ou tornou ilegal, revelando-as, ao mesmo tempo, como espaços politizados (basicamente pelos movimentos sociais contemporâneos).
São os espaços domésticos, o da produção, o da cidadania, o espaço mundial, cada um deles constituindo um feixe de relações sociais que, conectando-se em suas várias interfaces pela ação política, rompem com seu lugar privado, amorfo e meramente interativo que o campo político institucional lhes havia designado. Em conjunto, tornam visível uma multiculturalidade atuante que se torna capaz, no tempo, de identificar relações de poder e imaginar formas de transformá-las em relações de autoridade partilhada. Nos ensaios mais fortes do livro, Boaventura de Sousa Santos detém-se em "testar" esta hipótese em campos institucionais cruciais, como o são o judiciário e os tribunais, a universidade, a cultura política de fronteira, os novos movimentos sociais, a mundialização da produção e da cidadania.
Não se trata, portanto, de um projeto romântico de recuperar as margens e colocá-las no centro. Não há aqui nenhuma nostalgia do pré-moderno, mas sim o cuidado de apontar para diferentes discursos e práticas identitárias que estão pelo mundo, em diversos contextos intersubjetivos, os quais -não mais hierarquizados por referência à ciência e à arte consagradas, ao poder jurídico-político estatal e às formas de sociabilidade consensuais- podem constituir-se como diferentes formas de poder social em negociação e conflito permanente, de tal forma que o poder reaparece em sua natureza política como combinação entre várias e distintas formas efetivamente exercidas de conhecimento e ação.
Reconhecer que estes campos de negociação e conflito multiculturais podem formar um "novo senso comum político", como quer o autor, implica simultaneamente em reconhecer que a atual desregulação global da vida não encontra saída no fortalecimento do princípio único do Estado, mas no seu (relativo) descentramento. Nem esta saída está na predominância do mercado ou da comunidade, incapazes por si só de garantir uma regulação social que não seja fragmentada e dispersa. Qualquer tentativa em reabilitar a hierarquia destes princípios, para o autor, não poderia deter o empobrecimento irreversível do horizonte e das possibilidades do conhecimento e das práticas modernos, pois isto suporia refazer a hierarquização dos saberes a partir de sua própria pretensão de verdade e portanto reporia o bloqueio à possibilidade de pensar alternativas que contestassem as práticas hegemônicas.
Assim, por paradoxal que pareça e por mais que torçamos o nariz com a designação deste espaço como "pós-modernidade" ("um perfil descortinável, ainda sem nome, e cuja ausência de nome se designa por pós-modernidade", diz Boaventura no início do livro), reconhecer várias formas de conhecimento e as práticas que as sustentam para incorporá-las em uma relação horizontal, não relativista, argumentativa, com outros conhecimentos, constitui uma posição especial para este projeto: é uma análise que se constrói temporalmente, que recusa o império da fragmentação e dispersão, que não substitui sem mais os objetos de reflexão sociológicos já consagrados, mas coloca-os num outro campo epistemológico e prático -o da contemporaneidade radical dos conhecimentos-, com tanta criatividade quanto o pode ser uma análise imersa nas práticas e nas culturas efetivamente exercidas por "comunidades interpretativas" distintas, não obstante o fato de que seu diálogo possa ser atravessado pela desigualdade e pelo poder.
Finalmente, deve ser ocioso, mas importante, dizer que, ao longo destes ensaios, as ciências sociais são postas em foco exatamente pelo lado criativo, aberto, que está suposto na profusão de idéias de seu próprio método investigativo e em seu profundo compromisso com o campo democrático contemporâneo. Isto é muito mais importante do que qualquer rótulo que se aplique ao trabalho de Boaventura de Sousa Santos. Por isso não há, neste livro, uma nova teorização da realidade nem o abandono de sua busca. Pois o que aprendemos, sobretudo, é menos uma cartografia das questões contemporâneas do que a liberdade de um viajante cujo olhar não tem medo de transgredir consensos teóricos para imaginar, num diálogo ousado, um mundo mais democrático.

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