São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Pontapé certeiro

JOSUÉ MACHADO

Pontapé é um golpe que algumas pessoas às vezes têm vontade de dar no traseiro de seres desprezíveis. Mas o pontapé também pode relacionar-se com a arte de um mago da pelota. Um Pelé, um Garrincha, um Maradona. Então ganha o nome de chute, do inglês "shoot", atirar, disparar, arremessar. No entanto lê-se numa revista que " ...o Instituto Nacional dos EUA desembolsou US$ 3 bilhões para dar o pontapé inicial no Projeto Genoma Humano,..." .
Por que imagem tão sutil? É para combinar com a genética fina do Projeto Genoma Humano?
Seria bom lembrar que o processo de burilamento do texto exige algum cuidado para não se misturarem marretas com estiletes.
Em lugar de "dar o pontapé inicial por que não dizer, apenas "iniciar", verbo criado por Deus, quando criou o Céu e a Terra, para isso mesmo?
"Dar o pontapé inicial" projeta a imagem de uma "otoridade" num gramado, às vezes ruim, cercado por bajuladores e observado por 22 cidadãos de perna de fora e chuteiras à espera do começo da contenda. Ao redor, curiosos vários e assistentes diversos. Não combina com genes e a quietude de laboratórios com suas provetas.
O Conselheiro diria que metáforas e imagens variadas não devem ser pescadas num cesto por cegos. Ou melhor, por deficientes visuais. O resultado não costuma ser bom.
Euclides, nunca
Uma das distrações mais comuns entre as pessoas que escrevem, até bons repórteres e redatores, é a mistura indigesta de regências verbais. De vez em sempre tratam de forma igual verbos de natureza (regência) diferente. Por exemplo, um bravo analista publicou que o " ...banqueiro percebeu e beneficiou-se do novo ciclo..."
Claro que se percebe alguma coisa e beneficia-se "de" alguma coisa. Se o analista estivesse tão preocupado com a forma quanto com a informação, teria escrito que o generoso vendedor de dinheiro "percebeu o novo ciclo e beneficiou-se dele". Ou "... beneficiou-se com ele".
Ou distraiu-se ou esqueceu-se da regência adequada ou foi traído pelo computador infernal ou preferiu a forma concisa que misturou no mesmo balaio um verbo transitivo direto (perceber algo) e um transitivo indireto pronominal (beneficiar-se "de" algo ou "com" algo).
Seria medo de parecer rebuscado ou precioso como o Coelho Neto ou o Euclides da Cunha? Não haveria perigo. Por várias razões, jamais o chamarão de imitador de um desses autores.
De ou em?
Uma revista de automóveis anunciou antes do lançamento da linha de automóveis para 1996 que o Versailles terá tanque de combustível "em plástico". Por que "em plástico"? E um jornal publicou que a cabine de um caminhão foi "fabricada em alumínio reciclável. Por que "em alumínio"?
Em nossa amada língua as coisas são feitas de plástico, de alumínio, de madeira, de pedra, de algodão, de aço. De é a preposição indicativa da matéria de que algo é feito. Nos muitos casos em que se lêem por aí coisas como "tanques em plástico", "cabines em alumínio", "vestidos em seda", "calcinhas em aço", "cuecas em náilon", "estátuas em mármore", "camisinhas em madeira", "seios e bumbuns em silicone", os redatores estão escorregando num galicismo tão útil quanto aqueles edificantes programas políticos compulsórios.
Se os políticos percebessem quantos votos ganham com esses programas e os redatores quanto brilham com esses escorregões...

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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