São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
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Alongamento

JOÃO SAYAD

Dentistas correm o risco de acabar acreditando que os problemas do mundo podem ser resolvidos por frequentes aplicações de flúor e uma boa técnica de escovação dos dentes. Jardineiros, que tudo seria resolvido se arrancássemos ervas daninhas e não pisássemos na grama. Psicanalistas, se pudéssemos gastar muitas horas deitados num divã pensando em nós mesmos. Ministros da Fazenda e do Planejamento acreditam que o problema do mundo seria o déficit público. São ossos do ofício.
É tão difícil controlar e compatibilizar os gastos do governo que os economistas e as autoridades econômicas acabam vendo o mundo a partir das suas mesas atulhadas de pedidos de verbas e acreditam de boa fé que tudo poderia ser resolvido com um bom, definitivo e final corte dos gastos públicos.
Déficit público e contabilidade são assuntos maçantes que criam muita confusão. E, pelo menos para o ano que está passando, a eterna explicação do déficit público é muito simples e insatisfatória.
Convido-os para um simples exercício de alongamento: vamos esticar as idéias, flexibilizar os pensamentos como fazemos antes de uma sessão de ginástica aeróbica, onde tentaremos oxigenar nossa visão dos problemas econômicos brasileiros, analisando não só o déficit público como também o déficit privado.
Déficit é quanto a dívida de algum setor cresceu -público quando se analisa o crescimento da dívida pública; privado, quando crescimento da dívida privada.
Em 1995 a dívida do setor público cresceu quase US$ 40 bilhões, e portanto, o déficit público foi alto. Mas a dívida do setor privado também cresceu e muito rapidamente. Os jornais têm publicado os saldos de empréstimos inadimplentes, os problemas de crédito do setor agrícola, dos importadores etc. Portanto, o déficit privado também foi alto e cresceu com relação ao ano passado.
Nos últimos doze meses dois déficits foram importantes: o público e o privado. O déficit privado cresceu porque empresas e famílias confiantes no Plano Real (ou especulando contra o Plano Real?) compraram bens de consumo nacionais e importados além do que ganhavam todos os meses como salários ou outras formas de renda e por isto precisaram tomar dinheiro emprestado.
No caso da agricultura, porque os preços domésticos foram reduzidos pela sobrevalorização do câmbio e os empréstimos supervalorizados pela taxa de juros anormalmente alta. Além disto, as empresas, entusiasmadas com o crescimento das vendas, tomaram dinheiro emprestado para aumentar estoques.
O déficit público cresceu por várias razões, sendo as mais importantes um reflexo do crescimento do déficit privado. Primeiro, porque o governo praticou juros muito altos, de 40% ao ano, para segurar o déficit privado. Em segundo lugar, porque o governo comprou todos os dólares que ingressavam no país e tem hoje US$ 50 bilhões guardados.
O déficit privado foi consumido ou investido em estoques de matérias-primas e produtos finais. O déficit público foi investido em dólares que têm a vantagem de não sair de moda, não enferrujar se tomar chuva no cais do porto e não ser comido por ratos como cereais em armazéns. Por outro lado, rendem juros muito menores do que o dinheiro que o governo usa para comprá-los. Rendem 6% ao ano e custam 40% ao ano.
No ano de 1995, o déficit realmente importante para quem gosta de déficit é o déficit do balanço de pagamentos em transações correntes que pelas estimativas atuais será bem menor do que muitos esperavam. É natural que seja assim: o déficit de transações correntes é igual a soma dos déficits público e privado e os dois juntos acabaram não sendo tão grandes assim.
Esta história de déficit público e privado parece brincadeira e dá até dor nas juntas porque é um exercício contábil que nossa vida sedentária mental não está acostumada a fazer.

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