São Paulo, segunda-feira, 6 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Apelo é maior segredo de qualquer negócio

MARCELO PAIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Me lembrei de uma história e não tenho a menor idéia de por que vou contá-la. Você aguenta mais uma? Aguenta...
Numa época em que nosso metal vil não valia as pencas que vale hoje, moeda fraca, essas coisas, fiquei dois meses hospedado num hotelzinho barato de Milão trabalhando para uma editora italiana.
Hotelzinho barato se resume a um quarto limpo, sem televisão, telefone e com vizinhos suspeitos: no quarto ao lado, duas senhoras profissionais da vida atendiam dia e noite clientes arregimentados na esquina próxima.
Prostitutas simpáticas, anos de estrada, uma loira (ou artificialmente loira) e outra morena, que se revezavam; enquanto uma trabalhava, a outra caçava.
Cruzava com elas no café da manhã, assistíamos juntos a TV do hall de entrada e, algumas vezes, me levavam para jantar na cantina do sindicato dos taxistas, farta e barata.
Chegaram a tricotar para mim um cachecol que tenho até hoje. Deixa pra lá...
E muitas vezes eu estava no meu quarto e ouvia a cama vizinha ranger, e os gritos "Madonna"!, "Mamma mia"!, "Che Ragazzo, "Che Bello"!.
A cama chacoalhando cada vez mais, e os gritos se alternando: "Che Bello"!, "Madonna mia"!...
Evidente que eu tinha de parar o que estava fazendo para esperar o "gran finale". Não durava muito: às vezes dez, não mais que 15 minutos. Em seguida, silêncio, e os passinhos do casal pelo corredor.
O entra e sai passou a fazer parte da minha rotina. Já sabia de cor o ritual, o primeiro ranger, o primeiro grito e a sequência a seguir.
Os gritos eram tão convincentes que passei a achar que elas realmente gostavam do que faziam, o que é raro em muita profissão.
Até o dia em que a morena teve uma alergia, perdeu a voz, e ficou sem trabalhar. Passou a manhã, tarde e noite tricotando em frente à TV.
Com a quebra da rotina, já que o entra-e-sai diminuiu, também não consegui trabalhar.
Não aguentei, fui até o hall e perguntei por que não trabalhava se o problema era na voz. Me respondeu com a maior tranquilidade que sua voz era o seu trabalho, o resto, detalhe.
Isto me serviu para a vida toda. O trabalho em si pode ser bom, mas, sem um apelo, pode passar em branco, deu pra você entender?
E não precisa me agradecer. Estou aqui para isso, para lhe servir.

Texto Anterior: "É importante saber se cuidar"
Próximo Texto: Evento no SESC debate o destino da humanidade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.