São Paulo, quinta-feira, 9 de novembro de 1995
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As contorções da paixão

MOACYR SCLIAR

Esses caras que lêem o jornal por cima do ombro da gente às vezes contam histórias interessantes. Foi o que aconteceu comigo domingo. Era um dia quente e eu estava sentado no parque lendo a Folha. O homem a meu lado, que pegava carona na leitura, não pôde se conter e pediu que eu lhe emprestasse o Cotidiano: queria ler sobre a colombiana que se apaixonou por um contorcionista. E explicou por que:
- Comigo aconteceu uma coisa parecida.
- Você é contorcionista?
Pergunta tola. Homem de meia-idade, baixinho, meio obeso, ele poderia ser qualquer coisa na vida, menos artista de circo. E não era:
- Não. Eu também me apaixonei por uma contorcionista. Uma uruguaia que trabalhava num circo. Mulher, linda, linda.
Interrompeu-se, com o olhar perdido. E continuou:
- E em termo de contorções era uma artista. O que ela fazia, você não pode imaginar. No chão, no trapézio, ela parecia uma cobra, enrolava-se de qualquer jeito. Eu ia ao circo todos os dias. Ela notou. Sorria para mim. Criei coragem, convidei-a para sair, acabamos casando. Ela, naturalmente, largou o circo.
Nova pausa. Evidentemente, não lhe era fácil narrar o que tinha acontecido.
- No começo foi um paraíso. Nós nos amávamos demais, a vida era uma lua-de-mel permanente. Depois, começaram os problemas. Ela andava triste, chorava muito. E acabou me confessando: sentia falta do picadeiro, do trapézio, dos aplausos. O que, claro, eu não podia remediar. Mas aí ela mesmo teve uma idéia. Andava lendo um livro chamado Posições, destes que ensinam como variar o ato sexual. E lhe ocorreu que podíamos fazer aquilo, e até melhor. Perguntou se concordava, eu disse que sim. E podia não concordar? Era minha esposa, eu tinha obrigações.
Suspirou:
- Foi o diabo. Cada noite era uma nova posição. Ela se contorcia toda, eu tinha de me contorcer também - tudo estudado, passo a passo, como num manual de ginástica. Orgasmo era de menos, chegar à posição era o importante: cabeça entre as pernas, coisas assim. Eu me submetia a tudo -mas minha coluna não aguentou. Fui parar no hospital, com uma hérnia de disco. O médico me perguntou o que tinha acontecido, contei, e ele foi categórico: o senhor tem de escolher entre sua coluna e sua mulher.
Arrematou:
- Eu escolhi a minha coluna. Afinal, mulheres existem várias, a coluna é só uma. E acho que ela também gostou da escolha. Voltou para o circo, está muito contente.
Perguntou se podia ficar com o Cotidiano:
- Quero mandar para ela. Tenho certeza de que vai gostar desta história de amor.
Eu concordei. Em nome de uma história de amor, a gente deve fazer qualquer coisa. Menos -quando se sofre da coluna- contorções.

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