São Paulo, quinta-feira, 9 de novembro de 1995
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Ele era a biblioteca de Babel

JEAN-FRANÇOIS LYOTARD
DO "LIBERÁTION"

Ele era a biblioteca de Babel, mas sem preocupação de manter o fichário em dia, pelo contrário, acrescentar, fazê-lo transbordar. Sem preconceitos, mas com ódios, ódio da mesmice, ódio por todo pensamento arraigado a qualquer transcendência, de Freud antes de mais nada.
E ele compunha com Guattari um kafka cômico, uma alma toda corpo, uma lei ignorada, um pai rejeitado pelas mocinhas. Toda sabedoria era de imanência. Nada tão odioso como os mestres, os porta-vozes. O teórico tendo sempre que ser pensado como uma montagem de idéias, improvável, provisório, produzido pelo encontro de linhas de fuga heterogêneas, e útil. Era sua aliança secreta com o pensamento inglês, sua alergia aos pensadores da história. Nada de fim disto ou daquilo.
Ele fez de Nietzsche o inventor de uma temporalidade não diacrônica, assim como Proust com seus signos e os estóicos com os incorpóreos. O princípio e o fim são fúteis em relação ao aion (fogo, em grego, fundamento do ser na filosofia de Heráclito). A utilidade se mede pelo aumento da potência de inventar. Ele acreditava apenas nisso, na criação. Dela, ele analisava os mecanismos nas ciências, na arte e na literatura, nas filosofias. Suas próprias análises eram criações. Ele tinha a engenhosidade risonha e generosa do gênio.
Eu sempre pensei que ele era um dos dois gênios de nossa geração filosófica. Ele nunca fez nada para que seu valor fosse reconhecido, acreditando apenas no mais simples. A instituição espantava-o, os projetos coletivos, os aparelhos. Ele sabia que a eles só aderem os loucos. Esse saber o colocou em convívio, por um certo tempo, com Foucault. Aos poucos, os estudantes, os pesquisadores descobrem a fecundidade, a exuberância desse pensamento fugidio. Seu charme lhe trazia amigos que ele "lia e saqueava, que ele conservava por uma qualidade que eles mesmos desconheciam, ou rejeitava com cortesia depois de um tempo, como os livros sem uso que acabavam jogados no fogo da lareira. Ele era muito duro para sentir decepções e ressentimentos, afeições negativas. Nesse fim de século niilista, ele era a afirmação. Até na doença e na morte.
Porque falei dele no passado? Ele riria, ele está rindo, ele está aqui. É a tua tristeza, seu idiota, ele diz.

JEAN FRANÇOIS LYOTARD é filósofo. Sua última obra publicada foi "Moralités postmodernes", pela editora francesa Galilée, em 1993.

Tradução: Lia Marcondes

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