São Paulo, quinta-feira, 9 de novembro de 1995
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A reforma fiscal para a Saúde

RAUL CUTAIT; ALCIDES JORGE COSTA

Os gastos públicos com a Saúde no Brasil são baixos, de 2% a 3% do PIB nacional
RAUL CUTAIT e ALCIDES JORGE COSTA
Nos últimos meses todos têm acompanhado a cruzada do ministro Jatene em prol de recursos adicionais para a Saúde, pretendidos em caráter emergencial. A fórmula proposta, através da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF), tem merecido ampla discussão. Existem os que são contra essa proposta porque, no seu entender, a CPMF seria nada mais do que um novo imposto, regressivo e inflacionário, entre outros predicados a ele atribuídos por economistas e tributaristas. Contudo muitos do que são conceitualmente contra essa contribuição são capazes de aceitá-la temporariamente, tendo em vista a situação de risco pela qual passa a saúde no país e até porque, é interessante notar, não apareceu nenhuma outra fórmula que permita incorporar à Saúde o montante de recursos advogados pelo ministro. A proposta do senador Pedro Piva, baseada em aumento de alíquotas sobre produtos nocivos à saúde, tais como o fumo e o álcool, embora possa ser mais facilmente aprovada pelo Legislativo não permitiria levantar mais do que um terço dos R$ 6 bilhões almejados. Vale dizer que o inevitável aumento de preços que irá advir dessa medida provavelmente estimulará a diminuição de consumo desses produtos, principalmente entre os jovens, onde a demanda é mais elástica em função das restrições de renda e da maior capacidade de rejeição desses hábitos de consumo. Do ponto de vista da saúde individual, tal fato é altamente desejável, embora possa estimular contrabando e a sonegação como formas de fugir à carga fiscal. Outra alternativa imediatista seria a contração de um novo empréstimo do FAT que, entre outros inconvenientes, esbarraria no problema dos juros adicionais.
Um lado bastante positivo relacionado com a ampla discussão que vem se desenvolvendo sobre esse tema é que tem sido exposto à população o problema do financiamento da Saúde. Contudo tem sido deixado meio de lado um aspecto fundamental, pelo seu caráter definitivo, que é como contemplar o setor da saúde com a futura reforma fiscal. Em outras palavras, como criar uma condição constitucional tal que garanta para a Saúde os recursos necessários, e de forma permanente. Há de se entender que, sem a mínima tranquilidade de financiamento, torna-se impossível o planejamento para implementar estratégias para ações a longo prazo de promoção e prevenção de saúde, além, evidentemente, das assistenciais.
Os gastos públicos com a Saúde no Brasil são excessivamente baixos, e representam apenas de 2% a 3% do PIB nacional. Até agora, o governo vem despendendo menos de US$ 100 per capita/ano, dos quais somente 25% advêm dos Estados e municípios. O atual modelo de financiamento da Saúde baseia-se na arrecadação das chamadas contribuições sociais, que são tributos em cascata, cumulativos e regressivos e que, por isso mesmo, têm efeitos indesejáveis na economia nacional. Sendo regressivos, recaem com mais intensidade exatamente sobre as classes de menor renda e, sendo cumulativos, não só estimulam a verticalização das empresas como também inibem a competitividade dos produtos nacionais nos mercados internacionais. Em última análise, reduzem a oferta de emprego.
Além das limitações de oferta de recursos econômicos, existe o fato de que a Saúde vem exigindo esses recursos em caráter crescente, por dois motivos principais: a) como demonstrou o economista André Medici, a inflação no setor é maior que a inflação geral, 88% a mais de 1980 a 1994. Tal fato se deve, entre outros motivos, à mudança do espectro epidemiológico no país, que vem apresentando uma prevalência cada vez maior de doenças de diagnóstico e tratamento mais onerosos, tais como as cardiocirculatórias e o câncer, bem como a incorporação de novas e dispendiosas tecnologias. Como agravante, existe uma importante defasagem de 227% nas tabelas de pagamento do setor somente no período de 1990 a 1994; b) a melhoria do setor da saúde está associada, indubitavelmente, a mais gastos. A abertura de novos postos de saúde e hospitais, bem como o adequado funcionamento dos já existentes, implica em inevitável aumento do custeio do sistema.
Como já salientou o ministro Jatene em diversas oportunidades, apesar de todos esses problemas o orçamento efetivo de 1995 é inferior ao de 1994. Portanto o momento é mais do que oportuno para se falar em uma reforma fiscal que dê sólida base ao setor da saúde, que, pelo menos nos discursos, vem sendo alçado a prioridade.
A tão falada reforma fiscal, em um contexto de estabilidade econômica, deve propiciar a exclusão, do orçamento, de gastos desmesurados com a máquina pública, permitindo um enfoque dirigido aos programas sociais, como os da Saúde, a exemplo do que ocorreu em outros países latino-americanos que passaram por processo semelhante. Por outro lado, deve estimular uma maior participação dos governos estaduais e municipais, que devem dotar recursos adicionais ao setor da saúde.
Um dos pontos importantes da discussão sobre a reforma fiscal é a questão da vinculação, que passa por um forte posicionamento político e econômico. A vinculação traria algumas vantagens para o setor da saúde: criaria fontes seguras para o seu orçamento, manteria um volume mínimo de recursos e minimizaria a fraqueza política (ou lobista) do setor. Entretanto, contra a vinculação pesam alguns aspectos altamente negativos: promove o engessamento do orçamento da União e dificulta modificações frente a mudanças de demanda, cabendo como exemplos, no caso da Saúde, a incorporação de tecnologia e as modificações do perfil epidemiológico. Um outro argumento contra a vinculação é que ela não preserva, necessariamente, as fontes de financiamento. Finalmente, as vinculações criam a sensação de tarefa cumprida e, por que não dizer, amortecem a indispensável vontade política.
Em recente fórum, promovido pelo Instituto para o Desenvolvimento da Saúde e pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário, que versou sobre a Reforma Fiscal para a Saúde e que contou com a participação de figuras expressivas ligadas ao setor, não se chegou a um consenso sobre como conduzir essa reforma. A posição hegemônica entre os economistas e tributaristas presentes mostrou-se favorável à não-vinculação em geral, o que inclui a própria Saúde. Já entre os técnicos, entre eles o ministro Jatene, e os parlamentares, como os deputados Carlos Mosconi e Eduardo Jorge, a tendência é criar a vinculação. Ambos os deputados apresentaram propostas de emenda constitucional que elevariam os recursos federais para a Saúde dos atuais R$ 14 bilhões para algo em torno de R$ 21 a 25 bilhões, sem contar o impacto de vinculações adicionais das receitas de Estados e municípios.
Outro aspecto extremamente relevante, e que merece ser mais discutido, é o da eventual modificação do sistema de arrecadação centralizada pela União. Assim como se propõe a descentralização das ações de saúde, parece ser coerente também a descentralização da arrecadação, a qual poderia ser, ao menos em parte, municipalizada. Seria de grande interesse não resumir a discussão à solução do problema conjuntural de um orçamento insuficiente para a Saúde, mas ampliar o debate para um reexame total da matéria, que, evidentemente, deve incluir o tema da descentralização da arrecadação.
Em conclusão, existem temas bastante polêmicos no campo do financiamento da Saúde que emergiram nas discussões no Fórum, entre eles: vinculação x não-vinculação de recursos; recursos fiscais x contribuições sociais; centralização x descentralização dos recursos; fontes públicas x privadas de recursos; fiscalização e punição para fraudes no sistema. Todas essas questões não são de solução simples e envolvem decisões que podem levar o país a ser mais ou menos redistributivo e justo do ponto de vista de seus gastos com a saúde. É importante ter em mente que não se deve buscar soluções apressadas e inconsistentes, para que, a exemplo da Constituição de 1988, não se inviabilizem as reformas que poderão ajustar os rumos sociais do país. Complementarmente, é necessário compreender que qualquer avanço no setor social passa por um processo decisório que depende de uma ferrenha vontade política dos nossos Poderes Executivo e Legislativo.

RAUL CUTAIT, 45, é professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, cirurgião do Hospital Sírio Libanês e presidente do Instituto para o Desenvolvimento da Saúde. Foi secretário da Saúde do município de São Paulo (administração Paulo Maluf).

ALCIDES JORGE COSTA, 70, é professor titular de direito tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membro do Conselho de Orientação do Instituto para o Desenvolvimento da Saúde e diretor-executivo do Instituto Brasileiro de Direito Tributário.

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