São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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Sobre jornais e aleluias

RUBEM ALVES

Sei que não é usual que em matérias de jornal se use o pronome "eu". O "eu" mostra a cara de quem escreve. Mas o bom jornalista não deixa que isso aconteça. Sua única missão é refletir a notícia como "espelho de cem olhos". Ora, espelho bom não se deixa ver. Quanto mais clara e distinta for a notícia, tanto mais invisíveis serão o jornalista e o seu olho. Por isso, ele não fala "eu".
Mas desde alguns anos fui acometido de uma doença oftálmica que atacou também os olhos de Jorge Luis Borges, que ao final da vida fez essa declaração comovente:
"Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitantes, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto".
Essa doença se chama "poesia". O poeta sabe que a notícia revela sempre o rosto de quem a dá. "O país sem limites de cada artista é ele mesmo", dizia Cummings. Desculpo-me pelo uso do "eu" dizendo que sofro de poesia. Isso diminui o meu embaraço de aparecer neste lugar de jornal usando blazer vermelho quando todos se vestem de preto.
Ando todas as manhãs. Ando porque não quero morrer cedo, mas sobretudo pela alegria de ver, de ouvir, de cheirar, de sentir o vento na pele. O corpo, livre dos puxões e empurrões dos deveres, brinca com o pensamento. Pensamento bom só aparece quando se anda, dizia Nietzsche.
Pois eu, nessas andanças matutinas, me encontro todos os dias com um outro andarilho. Está sempre acompanhado dos seus cachorros. Passo pertinho dele, mas sei que não moramos no mesmo mundo porque durante toda a sua andança ele lê um jornal.
Durante muito tempo esse comportamento me intrigou. Eu não conseguia entender que alguém pudesse achar um jornal mais interessante que árvores, pássaros, céu, vento. Imaginei que, talvez, ele tenha sido monge em outros tempos. Os monges desenvolveram ao seu grau máximo a arte de ler os seus breviários enquanto andam. Dentre eles destacam-se os dominicanos, que até andam para trás enquanto lêem, o que frequentemente acontece com outras pessoas...
O homem com seus cachorros e jornal repentinamente se transformou em um objeto onírico: olhei para ele, espantei-me, e pus-me a sonhar. Que mecanismos teriam incidido sobre seus olhos e pensamentos para que ele fizesse a troca insólita dos matutinos prazeres dos sentidos pelos insossos desprazeres dos matutinos?
Um professor universitário ou um militante político logo me repreenderiam, informando-me que o homem dos cachorros e do jornal deve ser um cidadão consciente, que trata de se informar para que sua ação naquele dia seja politicamente correta. Para isso os jornais existem. Quanto a mim, não passo de um alienado, semelhante ao idiota do filme "Muito Além do Jardim", que confessava jamais ler jornais e que chegou a ser conselheiro do presidente porque as délficas idiotices que dizia eram sempre interpretadas como misteriosas revelações do inefável. Aí fiquei com medo de que, com a minha confissão de que não leio os jornais, me tomassem também por um idiota.
De fato, não leio os jornais. Passo os olhos pelas notícias: preciso ter uma idéia não do que está acontecendo, mas daquilo que está sendo notícia. "O que está acontecendo" e as "notícias" não são a mesma coisa. Notícia vem de notar. E o "notar" varia de corpo para corpo. Urubu não nota madressilva. Beija-flor não nota carniça. Jornal de beija-flor é diferente de jornal de urubu. Não sei o que fazer com a maioria das notícias. Com a previsão do tempo é fácil. Ela diz que vai chover. Previno-me com o guarda-chuva. Mas a maioria das notícias não me permite qualquer ação prática. "Serra declara que privatizar só não resolve": manchete. A direção do jornal elegeu essa como a notícia mais importante do dia. Ô, dia chato... Uma manchete, se eu fosse diretor de jornal, teria de ser semelhante a um "tema" que o jornal dá ao povo para que ele faça variações naquele dia: coisa para provocar a dança dos pensamentos.
Aí eu me pergunto: "Meu Deus, que variação posso eu, modesto cidadão, fazer com a informação de que o Serra disse que privatizar só não resolve?". Meu pensador fica parado. Acresce o fato de que declaração de político não pode ser acreditada. Ricupero estava certo. A política é a arte do engano: mostrar o lado bonito da goiaba, esconder o lado podre. Aí eu descubro algo que posso fazer com a notícia: rio. Sou bufão. É divertido ver o rei nu. O problema é que poucos são os que percebem que os jornais são sérios nas tirinhas do Calvin e do Garfield e cômicos em todo o resto.
Enquanto escrevia tentei lembrar-me das vezes em que alguma notícia tenha se tornado brinquedo para o meu pensamento. Pouquíssimas. Alfred North Whitehead, que com Russell escreveu os "Principia Mathematica" em 1910, se referia às "idéias inertes". Idéias inertes são idéias que têm a leveza e a mobilidade de blocos de concreto. Qualquer aluno de nossas escolas, especialmente os que estão se preparando para os vestibulares, sabe o que elas são. Calvin diz logo que escola é betoneira... Assim são, para mim, as notícias de jornal, na sua esmagadora maioria.
Por que as pessoas lêem jornais? Há muitas razões. Uma delas, em especial, chama a minha atenção: as pessoas lêem os jornais para não pensar. Schopenhauer nota que o ato de ler, que é pensar os pensamentos de uma outra pessoa, exige que se pare de pensar os próprios pensamentos.
Pensar é arte sutil. Sou psicanalista. A maioria dos sofrimentos das pessoas deriva dos seus pensamentos. Nada mais natural, portanto, que elas busquem artifícios para parar de pensar, os mais drásticos sendo a conversão a uma religião em que o líder religioso pensa pelo fiel, a sonoterapia e o suicídio. Todas essas são técnicas com um mesmo fim: não pensar. A repetição mecânica dos "padre-nossos" e "ave-marias" nos velórios entope a cabeça que, assim, não pensa sobre a morte. Melhor que Lexotan para fazer dormir. O ego, olhos arregalados, ao final sucumbe à hipnose das repetições sem sentido. Que se acrescente ao "penso, logo existo" o "penso, logo sofro".
Essa é uma das funções da leitura dos jornais -especialmente aos sábados e domingos, dias amaldiçoados: o tempo é livre e a cabeça fica entregue aos próprios pensamentos. Contra o terror do vazio nos finais de semanas o remédio mais simples e barato é ler, de cabo a rabo, os grossíssimos jornais. E isso, com consciência política: "Estou me informando!".
Melhor que remédio ou uísque, porque não dá ressaca. Está dito no nome: jornal. É só para o dia. Não dura. No dia seguinte está tudo esquecido. Jornal deriva do latim "diurnalis", diário; "diurnus", que dura um dia somente. Se o nome viesse do grego não seria "jornal", mas "efêmero": "epi" = sobre + "hemera" = dia -aquilo que não vive mais que um dia. As conhecidas "aleluias", frágeis criaturas aladas, são também conhecidas como "efêmeras" por só viverem um dia. Mas que dia! Nele elas saem, voam, encontram um parceiro, copulam e fecundam!
Seria bom que os efêmeros jornais tivessem esse poder. Para isso, entretanto, teriam de ser diferentes. Teriam de ser leves e de ter asas como as efêmeras aleluias. Palavra de poeta...

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