São Paulo, segunda-feira, 13 de novembro de 1995
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O mundo não é só flor que se cheire

MARCELO PAIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Uma coisita interessante, mui interessante. Estava eu, com cá minha alegria e amargura, numa sala de cinema de São Paulo, para ver "Kids".
Já tinha visto lá naqueles Estados Unidos e até já tinha escrito sobre ele aqui, meses atrás. Mas fui ver de novo.
Naquela cena, aquela última, a mais forte de todas, na festa em que a garota HIV positivo está dopada e tem suas roupas arrancadas por um garoto trincando de bêbado e rola um estupro. Ela, num sofá, sem mal respirar, e ele erguendo suas pernas e fazendo o diabo. Estupro? Bem...
Nos Estados Unidos, onde o tema é discutido diariamente, onde as mulheres se organizam em grupos nas escolas, faculdades e ambientes de trabalho para discutir a violência doméstica contra as mulheres, onde se soltou manuais sobre como se comportar frente a um homem que não sabe ouvir não, onde se prende quem dá uma cantada inconveniente e onde se vende um aparato de armas preventivas -de apitos a sprays (e não há uma garota que não tenha seu apetrecho guardado na bolsa)-, o filme acabou e a platéia, horrorizada, saiu em silêncio.
O filme, lá, tinha censura 18 anos. A platéia era do meio de universitário para cima. Aqui, censura 16 anos. O certo seria liberar o filme para menores, mas isto é outra conversa.
Aqui, durante a cena, a platéia riu, se esborrachou de rir do garoto tentando abrir as pernas da garota, tentando tirar a roupa, tentando fazer todo o resto. Riu de quê? De nervoso, timidez. Torciam, talvez, para que o garoto fosse bem sucedido e riam das dificuldades que ele tinha. E quantas garotas paulistanas não se viram nesta situação e saíram do cinema mudas e cabisbaixas.
Ou será que nós, homens brasileiros, sabemos ouvir não?
Mas livro não tem censura. Todos têm acesso fácil ao novo lançamento editorial "Nos Bastidores do Reino", de Mário Justino, negro que na adolescência entrou para a Igreja Universal do Reino de Deus, subiu aos postos mais altos, frequentou altas esferas e pegou Aids.
Expulso da Igreja pelo bispo Edir Macedo, perdeu tudo e conheceu um calvário sem paralelo, mendigando nos subterrâneos de Nova York, vivendo para o crack e a heroína plástica.
Ler esse livro é um ato de militância política, se é que você ainda se preocupa com isso. O mundo não é só flor que se cheire e não crie mil ilusões. Leia e reflita. Hoje, me perdoe, estou para lições de moral. Acontece...

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