São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 1995
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Diolinda e Cristiane

FRANCISCO FOOT HARDMAN

Por mais que tente desviar os olhos e a lembrança, continuam a me perseguir as figuras de duas mulheres -jovens, belas e brasileiras- que tiveram seus destinos expostos em imagens dramáticas pela mídia nacional nos últimos dias. Suas histórias de vida são até gritantemente opostas. As violências que sofreram têm forma e conteúdo muito distintos.
Mas a condição de culpadas com que certos mecanismos perversos da sociedade e do Estado as estigmatizaram, para de antemão excluí-las e isolá-las do convívio social sob pretexto de periculosidade contra valores e bens particulares, constitui documento elucidativo da história contemporânea do Brasil.
Refiro-me à Diolinda Alves de Souza, 25 anos, líder do Movimento dos Sem-Terra da região do Pontal do Paranapanema, presa, algemada, bruscamente transferida e encarcerada no Carandiru, acusada de "formação de quadrilha", e à Cristiane Gaidies, 20 anos, ex-estudante classe média, andarilha das ruas de São Paulo, drogada e praticante de furtos, assassinada com um tiro nas costas disparado por um jovem comerciante de 29 anos, do 12º andar de um prédio na rua Frei Caneca.
Parecerá à primeira vista desproposital esse tipo de paralelo, afora certa coincidência cronológica entre os eventos, de resto totalmente desconectados entre si, que levaram aquelas duas mulheres às manchetes da mídia. Diolinda, bem como outro líder do MST detido, Márcio Barreto, são na verdade presos políticos, os primeiros do governo FHC.
Cristiane Gaidies, se não morresse na calçada da Frei Caneca, poderia esperar sua detenção como presa comum, já condenada por pequenos furtos. Esses os fatos crus de suas respectivas crônicas policiais, que separam suas biografias como experiências de vida inteiramente diversas.
Mas por que suas figuras fortemente femininas e expressivas na dureza da situação de "perigosas marginais" (a de Cristiane incomparavelmente pior, já que morta) teimam em permanecer se cruzando como sombras de uma mesma insônia? Que fios poderiam, aqui, aproximar as tragédias vividas por essas duas mulheres, habitantes, respectivamente, de uma zona rural e de uma megacidade?
Invertam-se por um momento os termos dessas vidas descompassadas e imaginemos, com base em dados divulgados sobre suas histórias, Diolinda na megalópolis e Cristiane no sertão. Ora, o problema dos sem-terra é também psicossocial e cultural, com implicações urbanas imediatas, tendo a ver com identidades perdidas de uma história de expropriação e incorporação de fantasmas dominadores desde o período colonial.
Por sua vez, o drama da marginalidade urbana é o da desagregação da memória constitutiva do sujeito, do fracasso dos laços de sociabilidade comunitária, da miséria vinda do campo, do desamor e do não-reconhecimento afetivo como experiências fundantes.
Cristiane, desgarrada há tempos da família que se confessou "aliviada" após sua morte, era uma completa nômade no espaço urbano, uma "sem-terra" da metrópole. No cortiço da mesma Frei Caneca onde vinha se abrigando, com meninos de rua e outros marginais, pretendia, segundo depoimentos de parceiros da noite, melhorar o ambiente por demais sórdido, humanizá-lo com objetos de um lar imaginário que, por certo, nunca terá tido. No imenso descampado desse vazio, não só como miséria material, mas, sobretudo, afetiva e interativa.
Cristiane era uma navegante extraviada, perseguindo territórios que apaziguassem seu ser atormentado pelos desertos de uma humanidade fingida e fugidia. Não queria organizar nenhum movimento. Mas também peregrinava em busca de alguma terra prometida, sonhada em algum vôo destrutivo de crack, no entanto jamais parecida com aquele asfalto vermelho de um corpo que ainda se arrastou 30 metros antes de cair, sem vida, por obra de uma Taurus semi-automática nove milímetros.
Diolinda tem um único e grave vício: a lucidez. Guarda também outra enorme ameaça: sabe falar com sua voz singular, é dona de seu próprio discurso, no qual milhões de despossuídos facilmente se vêem. Seu choro, filmado e fotografado para todo o país quando da visita de comitiva do PT à Penitenciária Feminina do Carandiru, onde está presa, não significa apenas a emoção incontida pelo drama pessoal que vive e as violências que o Estado lhe impôs, inclusive o silêncio.
Chorava pelo irremediável peso do seu destino de líder em um país de direitos humanos tão negados. Pela mudança vertiginosa que esse deslocamento à cidade maior já produziu na sua vida. Pelo "não, mulher, não chore mais" que sua juventude e beleza terão, daqui em diante, de incorporar. Pelos nomes de lugares brasileiros já gravados para sempre na memória: Corumbiara, Paranapanema, Carandiru.
No bolso traseiro da calça de Cristiane foram encontrados um cachimbo de crack de tampa de tubo de pasta de dente e uma antena oca de rádio de carro. Na urbe gigantesca habitada por milhões de pessoas exiladas da mais rudimentar cidadania, Diolinda sabe, agora mais do que nunca, na cela injusta do presídio, que deverá buscar sozinha um novo solo de representação e forjar um sonho de solidariedade muito para longe desse mar de antenas ocas, desse acampamento de desterrados de tantas e tão absurdas histórias.
Por isso seu choro, mesmo que de modo involuntário, simboliza, também, o desconsolo de Cristiane, aquela que foi assassinada antes de alcançar a terra, antes de decorar em paz o "moquifo" com seus "kids" e mendigos da Frei Caneca, desejo desastrado no coração devoluto de São Paulo, nesse pontal dos desamparados da dignidade do maior PIB do Brasil!

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