São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 1995
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Uma recessão cômica

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O Brasil tem um presidente que, tal qual Maria Antonieta, costuma fazer "boutades" a propósito dos assuntos mais impróprios. Há algumas semanas, declarou que tinha "vontade de rir" quando ouvia falar em recessão, uma vez que, pelos cálculos do governo, o PIB iria crescer algo como 5% a 6% em 1995.
Bem sei que o brasileiro, em geral, não tem o menor respeito por números. Somos, por isso mesmo, vítimas frequentes das mais lamentáveis confusões aritméticas, muitas das quais patrocinadas pelo governo. Mas convenhamos que utilizar o dado anual para negar a existência de um processo recessivo desde abril já é sofismar um pouco demais, mesmo pelos padrões permissivos que vigoram na política e no debate econômico brasileiros.
O IBGE acaba de divulgar as suas estimativas do desempenho do PIB no terceiro trimestre deste ano. Os dados confirmam o que muitos já suspeitavam: a economia brasileira passou, sim, por uma recessão no segundo e terceiro trimestres de 1995.
Considerada a série do PIB com ajuste sazonal, a queda foi de 4% no segundo trimestre e de 1,3% no terceiro, acumulando diminuição de 5,2% no período. A recessão foi ainda mais pronunciada no setor industrial, cuja produção caiu nada menos que 10,6% nesses dois trimestres. Em termos "per capita", a queda foi de 5,9% para o PIB e de 11,2% para o produto industrial. O IBGE agora projeta em 4% a taxa de crescimento para 1995.
A definição mais usada internacionalmente considera como recessão um período em que ocorra queda do PIB (ajustado sazonalmente) por pelo menos dois trimestres consecutivos. Não é por acaso que a prática internacional evita, sempre que possível, servir-se das estatísticas anuais para identificar a ocorrência de recessão. A razão é que o dado anual descreve de forma imperfeita o que acontece com o nível de atividade econômica ao longo do ano.
Imaginem, por exemplo, que o PIB cresça de forma acentuada ao longo de um ano, mas permaneça estável a partir de janeiro do ano subsequente. Ao calcular-se a taxa de variação do PIB real, em bases anuais, a estatística referente ao segundo ano acusará expansão significativa, a despeito da estagnação durante o ano.
Algo semelhante ocorreu no caso brasileiro em 1994/95. A série do PIB trimestral dessazonalizado revela um crescimento expressivo e quase contínuo ao longo de 1994 e especialmente entre o terceiro trimestre de 1994 e o primeiro de 1995, com reversão da tendência a partir daí. Assim, a taxa de crescimento positiva em 1995 reflete, em grande medida, o crescimento do ano passado.
A essa altura, o leitor já terá percebido que está diante de um velho conhecido: o chamado "carry-over" estatístico, que apareceu com destaque nas análises dos índices de preços nos meses iniciais dos diversos programas de estabilização aplicados no Brasil desde 1986.
A abrupta desaceleração dos índices de preços fazia com que a taxa de inflação do primeiro mês do programa estivesse fortemente contaminada pela alta do nível de preços no mês anterior. Em outras palavras, a taxa de inflação era "transportada" estatisticamente de um mês para o outro.
Desculpem se estou insistindo no óbvio. A ninguém escapa o caráter até certo ponto arbitrário das definições de certos conceitos em economia. Não há forma universalmente válida de traçar com precisão a linha divisória entre "desaceleração" e "recessão", ou entre esta última e "depressão". Naturalmente, isso dá margem a grandes controvérsias semânticas, quase sempre impulsionadas por motivações políticas.
Alguns economistas da oposição gritam "recessão ao menor sinal de inflexão do nível de atividade. Às vezes, não é preciso nem isso. Em meados do ano passado, alguns deles anunciavam que o Plano Real traria de imediato uma forte recessão, quando a economia se encontrava, na verdade, às vésperas de uma expansão fenomenal do seu nível de atividade!
Já o governo, fortalecido pelos exageros e equívocos elementares da oposição, recorreu enquanto pôde a todo tipo de falácia para tentar negar as evidências de recessão em meados deste ano. Agora, terá de se limitar a anunciar (algo tardiamente) que "não há estabilização indolor".
Enfim, para um país como o Brasil, de crescimento populacional ainda alto pelos padrões dos países desenvolvidos, talvez fosse mais adequado considerar como recessivo todo período em que se verificasse, por pelo menos dois trimestres seguidos, queda do PIB "per capita".
De qualquer maneira, mesmo desconsiderando o crescimento populacional, os dados recém-divulgados pelo IBGE não deixam margem a dúvida.
Para 1996, poderemos ter o efeito oposto em termos estatísticos. Como o PIB acusou diminuição durante a maior parte deste ano, é possível que a taxa de crescimento anual apareça como medíocre ou até negativa, pelo menos em termos "per capita", ainda que o PIB venha a se recuperar ao longo do ano que vem. Nesse caso, é de se esperar que o governo "redescubra" o "carry-over" e passe a nos explicar exaustivamente o caráter ilusório da estatística anual...

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