São Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 1995
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Direito constitucional e goiabada

SAULO RAMOS

Com alguma desconfiança preconceituosa, tomei o vôo da Vasp para Nova York. Excelente. Melhorou com a tranquilidade de nove horas no MD11, lendo o ótimo romance de Jô Soares, "O Xangô de Baker Street", superior à novela das oito. Quando, no finzinho, Sherlock Holmes deu o grito de saudação do Orixá, o avião aterrizou (meu processador de texto teima em corrigir para "aterrissou". Deixa pra lá).
No hotel, brasileiros para todos os cantos, encantos e desencantos. Sarney, Maluf, Mário Amato, Lázaro Brandão, Delfim, Pisa, Tuma, centenas deles, componentes, com exceção dos políticos, de quase 80% do PIB brasileiro. Foram, como eu, prestigiar José Ermírio de Moraes, escolhido o Homem do Ano, acontecimento que, em uma semana, proporcionou, para as relações Brasil-Estados Unidos, mais resultados do que um ano de negociações convencionais.
Reuniões de todos os tipos, jantares, discurso da ministra Dorothéa Werneck em um inglês sem sotaque mineiro. Todos assegurando aos americanos que, desta vez, o Brasil vai, está seguro, a moeda emplacou.
Para mim, porém, sobrou o pior. Levantei cedo por ter um encontro com advogados de Nova York, curiosos em saber coisas do Brasil na banda jurídica, o que me complicou ao desespero. Antes, tomei o café da manhã no restaurante do hotel, ao lado da mesa de Maluf, que, em um gesto magnânimo, pagou-me o "breakfast", justamente quando tomo apenas um cafezinho. Valeu pelo gesto e porque, ao lado dele, estava Gilberto Dimenstein, presença da Folha nos Estados Unidos, com o bom papo de matar saudades.
Fui para o encontro com os coleguinhas causídicos. Tomei a primeira cacetada:
"Por que o fundo de estabilização econômica é emenda constitucional?"
Tentei uma evasiva: agora é fundo de estabilidade fiscal.
"Mas, antes e agora, sempre emenda constitucional e em disposição transitória. Por quê?"
É preciso entender os homens. A Constituição deles tem mais de 200 anos e, somente, 27 emendas. Cada uma delas submetida a um processo rigoroso: depois de aprovada pelo Congresso, tem de ser aprovada pela maioria absoluta dos Estados.
Nosso direito constitucional é muito diferente -retorqui, na minha vez, neste morão trocado. Há necessidade de uma disposição transitória suspender a vigência de algumas disposições permanentes.
"Por quê?"
Porque as permanentes dificultam muito a governabilidade com a distribuição de verbas para os Estados, municípios, Saúde, Educação, obrigatoriamente vinculadas, no orçamento, a diversas destinações.
"Por que não mudam a permanente?"
Bem, é que os governadores e prefeitos não concordam.
"Mas concordam com a transitória?"
Sim, pois a transitória suspende um pouquinho só. Inicialmente por dois anos, que já acabaram. Agora por um ano e meio. Com isso o governo terá recursos para manter a estabilidade monetária.
"A estabilidade monetária depende do governo?"
Em parte, para evitar a emissão de moeda no atendimento dos gastos públicos. Se os recursos dos impostos forem inteiramente gastos, conforme as disposições permanentes da Constituição, o governo se aperta.
"Mas o fundo não teve recursos aplicados na compra de goiabada?"
Isso é coisa de jornalista.
"Ou de político?"
Não, de político é marmelada.
"Olha, dr. Ramos, desculpe-nos, mas precisamos explicar a clientes nossos, com muitos investimentos no Brasil, esse curioso aspecto de vocês terem uma disposição constitucional, considerada prejudicial para o país..."
Para o governo.
"...e fazerem reforma da Constituição não para corrigi-la, mas para suspender sua eficácia um pouquinho só. Isso quer dizer que, terminado o prazo da transitória, a permanente voltará a vigorar plenamente e podemos esperar o ressurgimento da inflação."
Não é bem assim. Até lá o governo poderá ter equilibrado suas contas. O Ministério da Saúde, por exemplo, está em vias de obter uma nova contribuição sobre movimentação financeira, que compensará as perdas para o fundo.
"De forma permanente?"
Não, também provisória.
"O direito constitucional brasileiro é sempre provisório?"
Mais ou menos.
A reunião foi longe. A lengalenga idem. Acabei convencendo os colegas de que o sistema brasileiro é melhor do que o deles, pois, sem a rigidez da ciência constitucional, nós conseguimos contornar os problemas pelas bordas, descascar o abacaxi com imaginação e ainda comer algumas rodelas com goiabada. Aí me deu fome. Fui almoçar no hotel. Comi bem. Olhei para todas as mesas. Maluf não estava mais. Somente dona Silvia, fumando deliciosamente sua elegantíssima piteira.
Mas naquela semana já começara, nos Estados Unidos, um problema sério entre o presidente e o Congresso. Clinton nega-se a sancionar o orçamento, votado pelos parlamentares, porque entende ter havido muitos cortes de verbas destinadas à previdência e à saúde. Disse que o mais rico país do mundo ficará ingovernável, plagiando abertamente meu amigo José Sarney. E o Congresso não volta atrás. Votou, está votado, sem volta. Assim, o governo norte-americano, à falta de orçamento, não pode pagar ninguém, nem funcionário. Se pagar, impeachment. É crise brava.
Ontem, telefonou-me um daqueles advogados, desesperado com o impasse, nunca dantes acontecido, entre o presidente dos Estados Unidos e o Congresso:
"Dr. Ramos, parabéns para o Brasil pela criatividade das disposições transitórias na Constituição. Se tivéssemos essa solução, nossa crise estaria resolvida."
Quer a receita? Posso mandá-la e, de brinde, enviarei informações sobre nossas medidas provisórias.
"Medida também provisória, o que é isso?"
É papo diferente para a legislação ordinária de emergência, que serve para questões orçamentárias.
"Talvez a idéia nos sirva para uma lei orçamentária complementar. Por favor, mande-me um estudo sobre todas essas provisórias e, se der, uma lata de goiabada."
Esse meu colega fala castelhano e, em espanhol, goiabada diz-se "marmelada de goayaba". Não sei se foi trocadilho, mas aprendeu rapidinho.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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