São Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 1995
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Na contramão da história

SILVIA PIMENTEL; VALÉRIA PANDJIARJIAN

O tema do aborto, por lidar com questões de vida e morte, é um dos mais difíceis e dolorosos
SILVIA PIMENTEL e VALÉRIA PANDJIARJIAN
É logo após o Brasil assinar a Plataforma de Ação na 4ª Conferência Mundial da Mulher em Pequim, quando comprometeu-se a "considerar a revisão das leis que contêm medidas punitivas contra as mulheres que realizam abortos ilegais" (parágrafo 107 K), que é instalada no Congresso Nacional Comissão Especial da PEC 25-A/95 - Direito à Vida (proposta de emenda constitucional). Esta pretende alterar o caput do artigo 5º da Constituição, estabelecendo a "garantia do direito à vida desde a concepção". Vale esclarecer: se aprovada, essa emenda inviabilizaria, em termos jurídicos, a realização do aborto em qualquer hipótese, inclusive nos casos de estupro e risco de vida da mãe, hoje legalmente permitidos.
O tema do aborto, por lidar com questões de vida e morte, é um dos mais difíceis e dolorosos a serem enfrentados. A tendência mundial de liberalização do aborto parece ocorrer devido ao reconhecimento do quanto se impõe o respeito à liberdade e à consciência das pessoas diretamente envolvidas com essa questão. Revela, ainda, que decresce o "animus" de normatização punitiva, enquanto cresce o respeito à autonomia de cada pessoa humana.
Estudos, inclusive pesquisa recente do Datafolha, revelam que mesmo seguidores de religiões que proíbem a contracepção e o aborto afirmam manter a sua autonomia quanto aos assuntos relacionados à área da sexualidade e da reprodução.
A Organização Mundial da Saúde estimou que 99% das 500 mil mortes maternas que ocorrem anualmente no mundo se dão nos países em desenvolvimento; destas, de 115 a 204 mil são resultantes de complicações de abortos ilegais realizados por pessoas desqualificadas.
Esses dados podem ser desconsiderados em um país em desenvolvimento como o Brasil? Será que a melhor estratégia para aqueles que querem garantir a vida é criminalizar o aborto? Ou melhor seria investir em programas que ofereçam melhores condições de vida por meio das áreas de nutrição, habitação, educação e saúde? Não será o caso de somar esforços à Campanha Contra a Prostituição Infantil e Adolescente? Não será o caso de se criar uma CPI sobre a (não) implementação do Paism -Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher? Por que punir todas as mulheres -sem exceção- que não se sentem em condições de dar à luz, ao invés de criar condições médico-sociais para que possam dar à luz com dignidade aquelas que o desejam? Como justificar preterir-se a mãe, quando esta corre risco de vida, em favor do feto? Se há razões religiosas para tal entendimento, por parte das próprias mães, que elas assim o decidam. E somente elas.
A referida PEC significa, sem dúvida, um retrocesso. É absolutamente inaceitável que o Estado brasileiro pretenda se arvorar ao direito de punir uma mulher que, para salvar sua própria vida, tome a decisão de interromper sua gravidez. É também absolutamente inaceitável que o Estado se arvore ao direito de pretender punir mulher estuprada que não queira dar à luz ao produto dessa ignomínia.
Qual seria a fundamentação de tal "jus puniendi"? Com certeza não se embasaria em qualquer princípio de solidariedade e de direitos humanos.
É fato inconteste que não é a lei que impede ou determina a maior ou menor incidência do número de abortos. Se o objetivo é a diminuição de sua ocorrência, o que se deve é buscar interferir nos fatores que lhe são determinantes, tais como: desinformação quanto à sexualidade, ausência de serviços de saúde, carências socioeconômicas.
Resultados de recente estudo de Stanley K. Henshaw, diretor do Instituto Alan Guttmacher, de Nova York, que avalia as mudanças legislativas no mundo em relação ao tema no período de janeiro de 1988 a fevereiro de 1993, confirmam que tanto em países industrializados como em países em desenvolvimento estas têm se dado, predominantemente, no sentido de uma maior liberalização do aborto.
Segundo Henshaw, 40% da população mundial vive em países onde o aborto é permitido mediante solicitação da mulher; 23%, por razões sociais ou médico-sociais; 12%, por razões médicas referentes à saúde, genética ou jurídicas, como o estupro e o incesto; e, 25% se encontram na mais restritiva categoria, onde os abortos são proibidos, exceto quando a mulher corre risco de vida. São pouquíssimos os países que nem sequer admitem tal exceção, chegando a ser numericamente irrelevantes. Esse é o retrocesso que a PEC 25/95 sinaliza.
O Brasil, com iniciativas como a dessa proposta de emenda constitucional, caminha em descompasso com tendências humanizadoras mundiais, na contramão da história.

SILVIA PIMENTEL, 55, é membro do conselho diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e coordenadora nacional do Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe Para a Defesa dos Direitos da Mulher).

VALÉRIA PANDJIARJIAN, 26, advogada, é pesquisadora do Cladem-Brasil.

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