São Paulo, quinta-feira, 23 de novembro de 1995
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Diretora Vanessa Redgrave atrapalha a atriz

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Na saída do teatro, terça-feira, uma senhora dizia, "se ao menos ela fosse apenas atriz".
Talvez esteja certa e o problema de "Antônio e Cleópatra" seja a encenação de mão pesada, de tiros de festim e acenos com lenços para os bastidores, de marcações duras e pouco mais, da diretora Vanessa Redgrave.
Mas o fato é que a atriz Vanessa Redgrave também não surge à altura do mito. Em algumas cenas, certamente, deixa vislumbrar o talento de que os mais velhos tanto falam.
Por exemplo, ao sentar por alguns segundos, belíssima, com uma peruca ruiva encaracolada, direcionando os olhos azuis para a luz, diante do público, olhos saudosos de Marco Antônio, que partiu para Roma (ato 1, cena 5).
Outro momento vem com o final, quando o público, o que ainda está desperto, consegue deliciar-se com a sua elegia de Marco Antônio, num sonho descrito da mesma forma, com os próprios olhos azuis, agora diretos na platéia, interpretando uma alegria que quer fugir da tragédia já consumada (ato 5, cena 2).
Em outras cenas, é muito engraçada, tratando com a ligeireza de quem conhece o autor a fundo as melhores passagens cômicas, resvalando até pelo histrionismo para acentuar a frivolidade de Cleópatra.
Mas a diretora Vanessa Redgrave, se permite à atriz estes momentos de grandiosidade, em outros surge mais como empecilho.
Não consegue dar às cenas a fluência, o ritmo necessário e algumas se arrastam como se os atores, inclusive e sobretudo a própria Vanessa Redgrave, estivessem a ler, muito cansados, um texto de que conhecem bem a forma, de cor, mas pouco as motivações.
Por outro lado, a leitura que a diretora procura fazer da peça, como acontecia ano passado com o "Henrique 6º" da também inglesa Katie Mitchell, é de uma alegoria dos conflitos modernos, da guerra civil na Bósnia.
Por mais que Shakespeare permita todo tipo de leitura, o resultado desta vez é a contradição com a própria trama, mais até, com o próprio personagem de Cleópatra.
A peça "Antônio e Cleópatra" retrata o confronto entre Otávio César e Marco Antônio, o primeiro em Roma, o segundo no Oriente. Marco Antônio, apaixonado e levado pelo desregramento da corte de Cleópatra, em Alexandria, no Egito, termina por perder a guerra.
A tragédia da Bósnia, na montagem de Vanessa Redgrave, deveria surgir em algumas imagens, como na reunião de diversos personagens num único descrito como "o egípcio", para espelhar o povo pobre do Egito -e da Bósnia.
Ele é um "homeless", perdido em meio à guerra dos grandes líderes. Os líderes, Otávio César, a própria Cleópatra, são apresentados como cristãos, à espanhola, da Contra-Reforma.
A confusão é completa. A guerra romana é de unificação, não de balcanização. A guerra da Bósnia é de povos cada vez mais divididos por religião e etnia, não simplesmente de líderes. É uma guerra civil, de fato.
E os "homeless" das bandeiras da esquerda inglesa estão longe das misérias genocidas da guerra na Bósnia.
Mais importante, a leitura minimiza, esconde o papel da frivolidade, do desregramento de Cleópatra na derrota de Marco Antônio, tornando o personagem da rainha do Egito quase descartável, figurante.
É o que explica, talvez, a diferença de qualidade das interpretações da própria Vanessa Redgrave e de David Harewood, que faz Marco Antônio.
David Harewood, um dos grandes atores negros de teatro, hoje, parece seguir uma trilha própria de atuação, com um Marco Antônio traído por todos, até por suas próprias fraquezas. É um espetáculo à parte, solitário.

Título: Antônio e Cleópatra
Quando: Até sábado, às 21h
Onde: Teatro Sesc Anchieta (r. dr. Vila Nova, 245, região central de São Paulo, tel. 011/256-2281)
Quanto: R$ 20 e R$ 40

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