São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 1995
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Durante a recepção, o caos toma os bastidores

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Senhores arquitetos: gostaria de saber por que vocês se esquecem de planejar uma copa e uma cozinha em teatros, museus, supermercados, lojas de departamentos, grandes escritórios. Por favor, senhores arquitetos, por favor!
Esses lugares dão festas. Coquetéis de inauguração, jantares de confraternização, comemorações de datas significativas, tudo. Tudo acontece nesses lugares.
Como inaugurar uma Bienal num grande bufê e não na própria exposição? Como celebrar a vinda de um célebre artista estrangeiro senão no "foyer do teatro depois da peça? Como receber os convidados para uma distribuição de prêmios de design a não ser na loja onde estão os móveis?
Vejamos uma simples rodada de champanhe e de água num teatro. A casa comporta 1.300 convidados. A copa tem dois metros por dois metros. Onde colocar 2.600 copos, 600 garrafas, dezenas de tinas de gelo, 80 garçons? Isso para um coquetel. Já imaginaram um jantar à francesa?
Enquanto brilham luzes e velas, espouca o champanhe, garçons deslizam de luvas brancas, cheiros delicados invadem o ar, o caos se desenrola nos bastidores. Que bastidores? Corredores sem luz e sem janelas, algumas vezes íngremes, a água das pias recém-colocadas se espalhando pelo chão, pilhas góticas de pratos, barulhos estranhos de fogões de gás de bujão ameaçando tombar de vez o prédio já tombado.
Quem assistiu ao filme "Salada Russa em Paris"? Passa-se em São Petersburgo, numa casa pequena, escura, opressiva, cheirando a repolho. Essa casa tem um armário. O armário tem uma porta. Abre-se a porta e por um milagre qualquer se cai em Paris, a cidade-luz. Deixa-se para trás o sórdido, o mal-arranjado, o escuro, mergulha-se na limpeza, no brilho, na felicidade.
Poderia ser a metáfora perfeita para o serviço de bufê. O escuro e o claro, o luxo e o lixo.
No prédio da Bienal há uma copa-cozinha de três metros por três metros. É ali que conseguimos a mágica de soltar centenas de bandejas de prata com canapés milimétricos, barquetes com creme de aspargos quentes, ouricinhos de queijo queimando a língua...
É um feito maior que andar na corda bamba de motocicleta, sem rede. Cada prato que sai dali me dá a ilusão de que vamos receber uma salva ensurdecedora de palmas, uma homenagem pelo feito, e todos os cozinheiros de toque branca, meio torta, é verdade, se curvarão em agradecimento merecido. Qual nada! Devem imaginar que trabalhamos com fogões Gaggenau, duchas de água quente, máquinas de lavar e secar...
Há um teatro em São Paulo, reformado, que tem belíssima cozinha no subsolo. E as festas lá são no subsolo? Não! São no primeiro, segundo e terceiro andares ao mesmo tempo.
Os garçons e as copeiras são atletas de primeiro time. Envelhecem antes do tempo, esverdeados, exaustos, braços artríticos de carregar o champanhe acima das cabeças, pernas varicosadas de milhares de quilômetros de escadas percorridas. Estou exagerando? Nem um pouco!
Dirão os arquitetos que desenharam teatros e museus e não casas de pasto. Mas, acreditem, o que mais se faz nesses lugares é celebrar, beber e comer. É a realidade, não adianta fugir dela. A comida aproxima, a bebida congrega...
Seria possível uma solução criativa, vinda do próprio bufê? Às vezes sim, às vezes não. O jantar é à francesa, o que implica em pratos trocados um a um e levados para as catacumbas do terror.
Então vamos instalar alguma coisa, uma copa a meio caminho, um carrinho quente, que perto da mesa sirva os convidados. Mas não pode, é à francesa. Ça ne va pas. It won't do. Não é próprio. Não é adequado. É à francesa.
Que história é essa, quem é essa francesa prepotente? Por que não à cabocla?
Arquitetos, ajudai-nos, misericórdia, construam uma portinha pequena que nos leve para a luz. E nem precisa ser Paris.

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