São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 1995
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Drogas

Embora represente um pequeno passo positivo, a proposta do Confen (Conselho Federal de Entorpecentes) para uma nova legislação sobre as drogas ainda está muito longe do ideal, sobretudo quando se considera que o atual diploma é bastante antiquado e draconiano.
Deixar de enviar para o Carandiru o usuário de drogas (um dependente, considerado pela psiquiatria um doente) é realmente positivo, mas o fato de ainda tratá-lo como um infrator e não como uma pessoa que necessita de auxílio médico parece um contra-senso. Pela proposta do Confen, o usuário estaria sujeito a multas e penas de restrição de direitos.
Na mesma categoria entrariam os que fornecem drogas para amigos, sem contudo incitá-los ao uso do estupefaciente. A pena hoje é de 3 a 15 anos de reclusão por tráfico. O chamado usuário-traficante (aquele que vende drogas para sustentar seu vício) ainda ficaria sujeito à reclusão (1 a 2 anos). Ora, o perfil do usuário-traficante muitas vezes tende a ser o do que tem maior dependência da droga e, portanto, deveria ser encaminhado a uma clínica, não a uma penitenciária.
Já para o traficante, aquele que visa ao lucro com a venda de drogas, o Confen acertadamente manteve as penas atuais (3 a 15 anos de reclusão). Esse indivíduo, geralmente não-viciado, explora as fragilidades do cérebro humano para obter lucros, o que é definitivamente um crime hediondo e representa uma ameaça física à sociedade. Além disso, esse tipo de tráfico está quase sempre ligado ao contrabando de armas e outros crimes graves.
O projeto do Confen enseja também uma reflexão acerca da ausência de critérios técnicos desse órgão para definir quais são as drogas lícitas e as ilícitas. Um exemplo é o chá do Santo Daime. Extraído da Banisteriopsis caapi, esse poderoso alucinógeno, extremamente tóxico, é considerado legal no Brasil. Seu princípio ativo, a harmina, embora difira quimicamente do LSD -droga proibida-, tem exatamente o mesmo efeito desse psicotrópico: o bloqueio da serotonina.
Mais ainda, qualquer manual de psiquiatria qualifica o álcool como droga pesada, embora a instalação da dependência física se dê muito mais lentamente do que no caso de drogas como a cocaína ou a heroína. Seu uso não só é legal para maiores de idade como é incentivado social e publicitariamente.
Cerca de 10% da população masculina no Brasil é dependente de álcool. As consequências são terríveis: violência contra a mulher e os filhos, homicídios, acidentes de trânsito, cirrose hepática, pancreatite. O tratamento do alcoolismo já representa a segunda maior fonte de gastos do SUS, perdendo apenas para a obstetrícia. É óbvio que não se sugere aqui a proibição do álcool, já tentada nos EUA com resultados bastante negativos. Neste caso, o que se poderia fazer, pelo menos, é que se cumprisse a lei que impede a venda de bebidas alcoólicas para menores de 18 anos. O fenômeno do alcoolismo precoce já é motivo de atenção especial das autoridades sanitárias.
O abuso de outras drogas atinge apenas 0,5% dos brasileiros em geral, embora a chamada epidemia do crack preocupe os especialistas.
Já a maconha (Cannabis sativa ou indica) é considerada uma droga leve. Aparentemente, não provoca dependência física. Tem valor terapêutico como coadjuvante de tratamentos quimioterápicos e na cura do glaucoma. É igualmente óbvio que não se trata de sugerir que a maconha seja vendida livremente. Essa droga está claramente associada à síndrome paranóide. Se seu uso fosse indiscriminado, talvez a síndrome paranóide passasse a ser um problema de saúde pública tão sério como o alcoolismo. Não há razão, porém, para proibir seu uso controlado para fins terapêuticos.
O que se deseja do Confen é a adoção de critérios científicos e a não-subserviência a interesses econômicos ou pessoais na regulamentação do uso de drogas. Psicotrópicos são, paradoxalmente, a resposta para muitos males e um flagelo para os que deles abusam. Assim, todo cuidado é pouco.

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